Lettera amorosa
Lídia Jorge *
Neste momento preciso, eu deveria pensar naquele dia já distante em que recebi de um amigo uma pequena folha com um certo poema copiado à mão, e pela primeira vez tive conhecimento de que havia um poeta português chamado Eugénio de Andrade, autor do poema. Deveria lembrar-me desse e de muitos outros poemas que depois repeti em voz alta, enquanto conduzia pelas estradas planas de África, e as palavras sol, terra, luz, estrela, água, mãe, altura, pareciam ter saído duma geografia sem matéria para se dirigirem a um lugar preciso onde o coração perde o peso e a física. Deveria lembrar-me da forma como esses poemas resistiam à fragmentação e à análise, como se tivessem sacudido no decurso dos seus nascimentos toda a sílaba inquinada, todo o risco supérfluo. Como se tivessem saído dum lastro de palavras elementares, para revestirem uma realidade elementar, no interior da qual existia um grito solene reclamando a força absoluta do sentido. Deveria recordar quantas vezes, ao longo destes anos, não me encostei às capas brancas dos seus livros, à procura da conjunção das palavras mais sós e mais ardentes. Deveria pensar nesse tipo de ensino de ostinato rigore, em seu sentido amoroso mais amplo, nessa mestria doada à simplicidade como uma conquista da beleza sobre o desperdício. Neste momento, eu deveria encaminhar-me na direcção dos seus poemas mais límpidos, mais abertos à revelação do instante. Ou lembrar-me da tarde de Primavera em que subi os degraus da sua antiga casa, à Duque de Palmela, e da conversa que mantivemos sobre as coisas do Porto e do Mundo. E no entanto, em vez do que é devido, uma homenagem feita sobre o que repousa, e que ata o poeta ao que mais existe de si mesmo, aquilo que o ata aos livros, sendo ele mesmo os próprios livros, em vez de tudo isso, recordo Eugénio de Andrade naquele dia em que foi abordado por uma pessoa, a pessoa se curvou sobre o seu ombro e lhe disse que tinha feito uns versos. Em vez de me lembrar de poemas, lembro-me desse instante de perplexidade, com o próprio Eugénio de Andrade no seu centro, sentado numa sofá de Embaixada, em seu fato branco de linho, e de entre um grupo que o rodeava, uma pessoa a adiantar-se e a dizer-lhe – “Senhor Eugénio, eu fiz uns versos...” A pessoa era mulher, a pessoa abriu o seu saco de mulher, tomou papel e caneta e disse – “Eu fiz uns versos... Se me escrever aqui a sua morada, eu mando-lhos para me dizer o que pensa dos meus versos...” A pessoa já escrevia sobre um papel – “Para onde posso mandar, senhor Eugénio?”
Sim, eu poderia neste momento lembrar-me do poema - Trabalho com a frágil e amarga/ matéria do ar/ e sei uma canção para enganar a morte/ - assim errando vou a caminho do mar. Mais do que poderia, deveria, porque homenagear um poeta é falar da sua obra e não da sua vida, e no entanto eu penso nesse instante extraordinário de vida em que Eugénio de Andrade ficou perplexo porque estava em causa o ofício obstinado de ser poeta. A rapariga disse – Senhor Eugénio, eu fiz uns versos... Como se fazer uns versos fosse uma proeza que só por si justificasse que se dissesse em voz alta, se pedisse um endereço, se exigisse uma leitura e uma resposta, tudo isso dito no meio dos sofás duma Embaixada. Senhor Eugénio, eu fiz uns versos. E Eugénio de Andrade num primeiro instante não se moveu, não olhou a pessoa, e eu pensei – Não vai dizer nada, vai manter-se imóvel, vai deixar a pessoa com a caneta no ar, e todos nós vamos ficar imóveis, no centro desta cena de desentendimento, de encontro entre o supérfluo e o fundo, e todos vamos ficar tensos e amachucados, por muito tempo. Mas não, Eugénio de Andrade respondeu à pessoa – “Fez uns versos? Guarde-os para si. E se tiver vontade de fazer mais versos, não os faça, não perca tempo a fazer versos. E sobretudo não mos mande para casa. Eu não leio versos...” Sim, eu deveria lembrar neste momento os livros de capa branca de Eugénio de Andrade, a limpidez dos poemas de Eugénio, que não são versos, são o olhar da vida atravessado de palavras, e as palavras, ou os versos, se o quisermos dizer por deferência à forma, são o espelho e a fonte do ser, porque a vida seria muda, correndo tranquila entre as lápides e os sáurios, se não fosse o ser do ser, se não fossem as palavras que nos fazem gente, coisa pendente entre a matéria solar e a água. – Senhor Eugénio, eu fiz uns versos... Lembro-me de como depois Eugénio de Andrade se levantou, como sacudiu o cabelo, como se dirigiu à janela, de onde se via um jardim, como regressou de lá, ofendido e alterado. Não era uma questão de honra, era uma questão de poema. Era uma questão de poetas. Eugénio de Andrade não podia abdicar da decência da Poesia em nome da caridade pela figura daquele que faz uns versos, ornatos da vida diária. Versos, pedaços de renda tecida ao serão, fumos de cachimbo de roseira. Não me lembro de alguma vez uma cena de indignação me ter ensinado tanto sobre o ofício do poema. E lembro-o, neste momento, talvez com um excesso de matéria, um excesso de imagem, que mais não é do que a reclamação da vida, essa que passa passageira, em vez do poema que fica e se desprende da matreira contingência. Sim, eu deveria lembrar poemas, neste instante – De repente/ o silêncio sacudiu as crinas,/ correu para o mar./ Pensei... E assim por diante. Mas em vez do poema, obstinadamente, lembro esse instante em que ele mesmo, pessoa inteira, vestido de linho branco, sacudiu a cabeça, socorreu-se da vista para o jardim, como se fosse um mar, e regressou ao grupo para defender a dignidade duma vida que se dedicou ao poema sem pausa nem pressão. Por isso mesmo, neste instante, essa imagem é tão forte quanto a primeira, aquela outra, a da página manuscrita onde alguém, nas faldas da adolescência, copiou cuidadosamente Lettera Amorosa e ma enviou dentro dum livro, para que eu conhecesse um poeta português extraordinário, a quem escrevo neste momento a minha carta.
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* Texto para a 5.ª edição (2007) de "Os Sulcos da Sede"
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