Das nossas vidas
Lídia Jorge *Estou contente – Pouco a pouco, a Sophia vai perdendo os longos apelidos e vai ficando reduzida à imensidão do seu primeiro nome. É vergonhoso elogiar demais, as apoteoses arrastam consigo alguma coisa de faustoso impróprio da admiração. Mas como dizer sem dizer? Ultimamente várias são as mulheres que têm dito - Ela foi a mulher da minha vida. Não sei em que lugar me encontro, nem que lugar ocupei na reciprocidade do seu afecto, mas junto-me a todas as que assim pensam para dizer que Sophia também foi a mulher da minha vida. E tudo isso, só porque os seus livros finos ocupam meia estante?
Sim, porque os seus livros finos ocupam meia estante e lá dentro se encontra uma matéria encantada pelo deslumbramento em face do concreto da existência, com as palavras exactas, as imagens claras, as narrativas límpidas. Como se tivesse atravessado um século que dependurou a beleza da escrita na agrura da existência e ela, tendo dado por todas as tragédias, se tivesse recusado a fazer da escuridão o seu ingrediente. Mesmo nos poemas sobre o mais soturno e inferior, ela encontrou uma forma límpida para criar a repugnância. Abre-se o Livro Sexto e lê-se - O velho abutre é sábio e alisa as suas penas/ A podridão lhe agrada e seus discursos/ Têm o dom de tornar as almas mais pequenas. Mesmo aí, mesmo do interior desse tempo obscuro e dos seus heróis de terror, a sua escrita parte ao meio a realidade, separa-a nas duas metades e envia o desperdício para o monturo, como uma rainha que ensinasse a subtileza a todo um povo. Por isso mesmo os seus livros finos, que só enchem meia estante, são para muitos de nós mais do que a obra dum poeta, são uma cartilha para ler ao espelho e fazer nossa.
Mas ainda assim, apesar de tudo, Sophia poderia não ter sido a mulher das nossas vidas. Por que razão é? – Porque a própria vida, ela a viveu assim. Quem alguma vez se tenha sentado ao seu lado, conheceu sem dúvida uma mulher tão inteira quanto a escrita. Como pessoa, guarda-se dela a imagem duma compaixão altiva pelos outros, uma integridade perfeita, uma interpretação da mudança do Mundo pelo lado do respeito pelos seres humanos, como se a Humanidade fosse coisa de um deus. O seu Deus. Graça Morais representou essa impressão de grandeza num quadro admirável, a que chamou Sophia e o Anjo. Nele, a Sophia olha para cima e o seu busto está inteiro, o cabelo cai-lhe pelas costas. Mas o corpo é dum Minotauro sem as patas. Fico feliz com essa imagem. Quem não se lembra da voz da Sophia, presa à terra, sem rumor daquilo que a ligava ao chão? É bom dizer, porque não se pode repetir com frequência - Em Sophia, não havia coexistência entre o poeta e o estupor. Nela, tudo era poeta sobre poeta. E é esse sentido da realidade natural e limpa, onde as coisas brilham no horizonte de forma inaugural, que faz dela a mulher das nossas vidas.
Um nome só para Sophia? - Sim, para se parecer como ela própria, em livro e em vida.
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* Texto publicado na colectânea de depoimentos "A Sophia" (Ed. Caminho, 2007)
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