terça-feira, 3 de julho de 2007

Depoimento * Ortografia, caligrafia...

Ortografia,
a nossa impressão digital


Lídia Jorge *

Em torno da questão dos erros ortográficos, criaram-se várias lendas perniciosas. Uma delas é a que estabelece a confusão de que a eficácia de um texto resulta basicamente da sua correcção ortográfica. Não é verdade. Todos sabemos que a ortografia é apenas um dos aspectos da construção de um texto. As pedagogias modernas, que têm de admitir que se está perante uma mudança do registo escrito, por influência do impacto da comunicação audiovisual, e do auxílio dos correctores automáticos a que as próprias crianças têm acesso, procuram adaptar-se a quadros futuros que não são muito conhecidos, e reagem ainda um pouco às cegas. Ou pelo menos por tentativas. Creio que a crescente tendência para se compreender que o erro ortográfico só por si não determina a qualidade da expressão tem vindo a acentuar-se, tendo por base algumas boas razões. Aliás, desde sempre que se sabe que muitos alunos com boa capacidade de expressão e criatividade, por vezes cometem erros ortográficos. A questão está no grau do erro. Se uma criança aos doze anos continua a escrever lilás com z, assessor com c, azarado com s, não parece grave, podendo-se confiar que o auxílio do corrector irá ajudar a fixar a forma certa. Já a permanente confusão entre andasse e anda-se, ou a supressão do h em determinadas formas do verbo haver, atinge confusões que são basilares do ponto de vista da estrutura semântica da língua e é objecto de preocupação de qualquer professor de português. Estamos perante um campo em que só tem grandes certezas quem nunca lidou ao vivo com as dúvidas.

No entanto, em nenhuma situação, muito menos na situação actual, me parece que seja bom facilitar o laxismo ortográfico. O saber ortográfico é um saber relevante. Quanto mais as crianças interiorizarem as regras da escrita correcta, mais independentes ficarão do auxílio do aparelho de correcção, e essa autonomia é altamente construtora. O desembaraço mental em face das distinções ortográficas funciona para a Língua Materna como a Tabuada funciona no domínio do cálculo matemático – favorece a rapidez, automatiza nexos, poupa e prepara para avançar nos raciocínios e associações. Todos os professores o sabem. A ortografia não é uma pele superficial da expressão verbal, é uma estrutura profunda que se revela na imagem grafada. Por isso mesmo, interpreto a divisão ocorrida em recentes provas de exame, entre questões destinadas a serem avaliadas do ponto de vista ortográfico, e outras, as destinadas a avaliar a capacidade de interpretação, apenas como uma questão metodológica formal. Depreende-se que sejam campos diferentes para avaliação, e não áreas diferenciadas de valorização da Língua. Imaginar que se incite com isso as crianças a escreverem mal em determinadas frases, e noutras não, seria imaginar uma divisão esquizofrénica incompatível com qualquer tipo de aprendizagem séria. Não pode ser isso que está na mente de quem constrói as provas. Não acredito. Há que imaginar que os professores desejam que os alunos portugueses sejam rápidos, vivos, falem e escrevam correctamente, tornando-se aptos para recriar a Língua, adaptá-la, acrescentá-la, e não vocacionados a malbaratá-la e a degradá-la, propriamente. Não se pode ser um ignorante ortográfico. E em toda a altura do percurso escolar - eu diria que durante toda a vida - a aprendizagem ortográfica faz parte da formação individual e permanente da pessoa cultivada.

Aliás, sempre me admirei da sensação de impotência manifestada por alguns colegas professores perante os erros ortográficos dos alunos, que chegados de outros níveis de ensino, se lamentavam do seu estado de imbecilidade ortográfica, como um destino imutável. Sentimento particularmente agudo nos professores das outras áreas disciplinares. Pois talvez a arte de um professor de português, nesse campo, possa passar por fazer divulgar que errar ortograficamente acontece a todos, incluindo os profissionais da escrita, e os próprios escritores. Que o digam os revisores de livros e os copy-desks dos jornais. Ninguém domina todo o leque ortográfico duma Língua, mesmo sendo a sua Língua Materna. Esse ponto de partida nada tem de humildade, só tem de realismo. O estabelecimento de exercícios de correcção por tipologias de erros pode ser adaptado a todos os níveis de ensino. Ficaria bem que todos os professores se empenhassem em corrigir os erros ortográficos, sobretudo os aduzidos pelas suas matérias específicas. Explicar o que significam etimologicamente consideração, bissectriz, ou protozoário, não será da responsabilidade do professor que usa as palavras para se fazer entender?

Nunca fui professora de crianças pequenas. Desconheço sem dúvida muitos dos segredos que fazem um bom professor de Língua Materna nos primeiros anos. Não tenho dúvida, porém, que é por aí que a maior fatia da aquisição é feita em muitos aspectos, e também no ortográfico, que em parte é caligráfico. Essa ideia de escrita bonita que se perdeu por completo - e não se deve retomar, evidentemente - encerra contudo a ideia de que unidas, ortografia e caligrafia, podem fazer da criança, e do adolescente, pessoas que aprendem a usar a sua expressão com dignidade. Nós somos a nossa escrita. A grafologia é um saber romântico de interpretação da pessoa a partir da sua marca sobre o papel. Os computadores afastam a nossa assinatura sobre o papel. Distanciam-nos dele. Mas o homem afirmativo não é aquele que luta pela individualidade da sua própria impressão digital? - Eu não descuraria, na escola, a arte de escrever sem erros, a arte de desenhar as letras com legibilidade, a arte de nos inscrevermos com assinatura própria no papel, pelo menos enquanto não for inventado um outro suporte, menos evanascente que um écran. Eu continuaria a ser prudente, não correria atrás da tendência, procuraria controlar a tendência. Preparar-me-ia até para a sua aceleração, que no seu reverso, costuma acarretar uma boa dose de vingança. Procuraria evitar a todo o custo que a única assinatura de um jovem, num futuro próximo, fosse apenas um grafitti na parede.

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* in Público, 3 de junho de 2007
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