Lugar de chegada
Lídia Jorge *
Que palavras usar para falar de África? – Trago esse nome inscrito na bagagem da vida como se fosse uma parte do corpo. Escrevo-o no papel, e vejo o meu pai e o meu avô paterno saindo ambos de casa, naquela noite da minha pequena infância, para embarcarem no Paquete Pátria em direcção de Moçambique, e aí viveram dez anos. Depois eu haveria de saber que tudo isso acontecia no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, início dos anos cinquenta, quando a ditadura se fortalecia e as Colónias eram apresentadas à população como locais de paraíso. Entre as populações, constava que lá, em África, o clima era tão criador que uma semente que se deitasse à terra pela manhã, daria as primeiras folhas ainda antes do anoitecer, e outros prodígios semelhantes. Constava também que por lá nunca haveria Inverno, e que as pessoas locais estavam sempre de joelhos, à espera do branco, para servir. Também ficaria a saber que o meu avô e o meu pai, que não sabiam línguas, em vez de embarcarem para o Canadá ou os Estados Unidos, tinham preferido terras de emigração onde se falasse o português. Mas tudo isso eu só saberia muito mais tarde.
Na altura, eu apenas ouvia dizer que o meu avô, uma vez chegado à antiga Lourenço Marques, tinha rumado para Norte, e que o meu pai havia encontrado forma de fazer da sua vida um modo de andar cá e lá, entre o Norte e o Sul, esquadrinhando estradas e picadas, matéria para memórias quotidianas que ia deixando no seu diário. Não admira, assim, que as minhas primeiras frases em papel de carta tenham sido escritas para enviar para África. Que os primeiros endereços desenhados pelo meu punho, tenham sido dirigidos para Chingune-Chiloane. Que o meu primeiro atlas ao vivo tenha sido o redor de África e o meu primeiro outro mar, tenha sido o Oceano Índico. Pelo Natal, o meu avô enviava fotografias, todo vestido de branco, posando debaixo de coqueiros, de braço dado com os empregados das minas onde trabalhava. E o meu pai, sorridente, deixava-se fotografar em calção curto, junto de peças de caça grossa, no meio do mato. Os dois heróis da nossa casa encontravam-se no meio de África. O dinheiro que tínhamos vinha de lá, o meu sonho e a minha evasão voavam para lá. Todas as hipóteses de viagem se dirigiam para lá, par África. Claro que eu não podia adivinhar que cinquenta anos atrás, Joseph Conrad tivesse escrito Coração das Trevas, essa denúncia sobre a perversão dos seres humanos em face dos outros. Desconhecia de todo que em 1945, depois das Conferências de Yalta e Pstadam, a Europa tivesse começado a perceber que as autonomias das colónias eram irreversíveis. Creio que o meu pai e o meu avô também não sabiam. Se deixaram África anos depois, foi por outros motivos bem mais particulares, e bem menos tangíveis. Fosse como fosse, sem o saberem, já se tinham inscrito definitivamente na ordem dos ocupantes. Tinham feito parte do equívoco da nossa História retardada no tempo europeu. Caberia à minha geração pagar por isso. Involuntariamente, coube-me fazer parte da saga do colono odiado.
É verdade – Já nos anos setenta, vivi em Angola e Moçambique como testemunha da guerra colonial. Não era fácil. A sensação de fim de ciclo batia sobre a cabeça daqueles que detestavam o regime político e entretanto tinham lido Conrad e conheciam o destino de Lawrence da Arábia. Fazia parte do grupo daqueles que sabiam muito bem que em Lisboa ainda se vivia na ilusão melancólica de que a situação colonial poderia manter-se. No terreno, era uma ilusão sangrenta e dramática. A História recente ensinava que quanto mais tarde pior. A Universidade ensinava como nasciam e morriam os impérios. Como tantos não viam isso? Como tantos morriam, de um lado e de outro, por isso? Por esse equívoco? Quando tudo acabou, foi possível dizer – Felizmente, acabou. Doesse o que doesse, acabou.
Mas, desse tempo, eu guardei as vivências mais importantes da minha vida. Aprendi o que significava ocupar a terra dos outros, ser expulso da terra dos outros, aprendi com os outros. Amei os outros. Amei os meus alunos de África, as histórias das suas vidas contadas em redacções escritas nas aulas. Amei a terra, o clima exuberante, as árvores, as danças, as raparigas grávidas com quem convivi no Hospital do Macúti, eu, como elas, sabendo de crianças recém-nascidas muito menos do que elas. E de tudo isso, trouxe a ideia de que era urgente escrever livros porque tinha visto duas Culturas desentendidas, e durante esse tempo tinha aprendido a gramática adulta da dor humana de mistura com a alegria. Em forma directa, trouxe na cabeça a vivência transfigurada daquilo que haveria de resultar A Costa dos Murmúrios, homenagem a esse tempo ido, para encerrá-lo com beleza, mas sem nostalgia. Porque hoje a vida em África é outra, a promessa de regresso e destino de viagem tem outros modos, e a esperança de entendimento passa por outras vias. Difíceis vias, urgentes vias. Tão urgentes, que às vezes sinto vergonha de escrever textos sobre África. Há momentos em que a escrita é um modo de utilizar os braços duma forma demasiado passiva. Como amar África, percorrendo os dedos, apenas, por um teclado de plástico? – Vergonha. Escrever um texto não passa de uma simples metáfora e de um princípio.
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* in Público | África (2 de outubro de 2006)
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