terça-feira, 8 de agosto de 2006

Nota * Em Tavira, um rei depositou a coroa nos telhados

Travessia

Lídia Jorge *

Foto de Ivo Gomes
Em Tavira, um rei depositou a coroa nos telhados e foi-se embora. Do rei nada sabemos, da coroa, conhecemos os sótãos alinhados diante do rio e a forma geométrica da pirâmide. Fechamos os olhos e sabemos que há tesouros piramidais sobre as casas que olham para o Gilão.

Mas do que eu mais gosto é do percurso. Os dias estão quentes, atrás ficou a Pousada, a Escadaria, a chave e a sombra, o nosso destino é a Ilha. Para tanto é preciso atravessar as Quatro Águas, as palmeiras, as salinas, e lá em frente, ao fundo, vê-se o embarcadoiro. É aí que está atracado o pequeno barco em forma de mosquito que nos vai levar. Em tempos este barco foi uma lancha de pesca, depois o casco foi esventrado, forrado de bancos e encostos, uma sugestão de asas na coberta. Frágil, carregado de gente, em vez de peixe, o transporte é a parábola dum mosquito que se sacode, estremece, zune, enterra a barriga na água e atroa aos quatro ventos a sua curta viagem até ao embarcadoiro do outro lado. Entretanto, a água da ria está lisa, é azul, levemente untada, como se tivesse à mistura um amarelo de perfume ou a macieza doce do azeite. E nós aqui vamos, fazendo afugentar os pássaros brancos, as gaivotas, as cagarras. No piso de cima para onde subiram os mais ágeis, todos riem. No leito do barco, somos muitos, ninguém fala. De súbito, o barco mosquito faz uma curva, os pássaros voam atrás, e uma rapariga grita – “Ainda o amas?” Os risos são mais do que muitos. “Amas ou não amas? Diz lá, pá…” Estamos na superfície da água, rasgamos a camada de perfume e azul intenso, deixamos atrás um lastro de espuma, à medida que o corpo do mosquito avança. As raparigas em cima falam em simultâneo, esbracejam – “Se eu fosse a ela não voltava mais aqui. Conheceram-se aqui, foi por aqui que andaram, e ela volta? Porque volta?” O barquinho estremece mais, vai esfalfado na direcção do atracadoiro da Ilha, vai zunindo o coração do mosquito barco como se fosse rebentar de carga. E de novo - “Do que ela gosta é de sofrer, pá. E não diz nada…” O mosquito estende as asas para a outra margem, já se entregou à longarina, já lançou a amarra, a fila de baixo começa a sair, os de cima começam a descer. Agora ali vêm as raparigas gárrulas. Uma delas ainda grita - “Ela vem ao local do crime, compreendes?” São uma, duas, três, quatro, cinco. Mas aquela que eu quero ver é a rainha. Aposto que é a sexta. Ali vem ela – É pequena, morena, franzina, metade do seu volume é cabelo, a outra metade é vestido. Traz a mochila às costas e avança depois das outras, sem dizer nada. Leva o rosto fechado. É linda. Vai sozinha. E os meus olhos vão atrás dela, atrás da coragem dela, coloco-lhe uma coroa de rainha na cabeça. À noite, quem me dera fazê-la regressar da Ilha, acompanhada, deitá-la coroada, na colina, diante do Convento e do Castelo.
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* Nota de para o livro
"Pousadas de Portugal – Moradas de Sonho",
coordenação editorial do Centro Nacional de Cultura 
(Edições Inapa, 2006)

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