sexta-feira, 22 de julho de 2011

Prefácio * William Faulkner

Para Sartoris
Lídia Jorge *

O livro que o leitor agora tem entre mãos é uma peça lendária e merece ser lido com o cuidado que dispensamos à decifração do início de uma galáxia. Quem considera a obra de William Faulkner como uma das mais emblemáticas do século XX, e se dedica minimamente a compreender a filigrana do seu percurso, não deixará de sublinhar este livro como o portal da grande obra que viria a alterar o modo de escrever, e de ler, das gerações futuras. O próprio Faulkner, ao terminar Sartoris a 29 de Setembro de 1927, dirigindo-se duas semanas depois ao seu editor, Horace Liveright, anunciava que tinha escrito o livro, THE BOOK, considerando que os dois livros anteriores, em relação a este terceiro romance, não passavam de pequenas crias. Aliás, confiante na sua descoberta, acabava mesmo por acrescentar que estava a oferecer ao editor, sem margem para dúvida, o melhor livro do ano.

O seu editor, porém, não o entendeu assim, bem pelo contrário. Liveright recusou publicar esse livro que considerou difuso, sem intriga nem projecção, chegando ao ponto de acusar Faulkner de não ter nenhuma história para contar. O dactilograma de quase seiscentas páginas, que então apresentava o título de Flags in the Dust, acabaria por andar pelas secretárias de dez editoras diferentes, até chegar ao escritório da Harcourt & Brace. Ainda assim, para que fosse publicado mais de dois anos depois, o volume iria ser reduzido de um terço, e o título acabaria por subsidiar-se do nome de família dos seus protagonistas, Sartoris. A verdadeira responsabilidade de Faulkner nos cortes efectuados não ficou clara, nem tão pouco a iniciativa do novo título. E o romance, só publicado no último dia do ano de 1929, mesmo depois desse ajeitamento às conveniências do tempo, não conheceu qualquer boa fortuna. No entanto, o reconhecimento que a crítica e os leitores não lhe conferiam, ganhava-o o autor para si próprio, em privado, diante da sua máquina de escrever. William Faulkner mal tinha entrado na casa dos trinta anos, e enquanto todas essas vicissitudes ocorriam lá fora, em lume brando, na sua mesa de trabalho, confirmava para si próprio a sua originalidade como escritor, a lume forte. Por esses dias, iniciava-se mesmo o período mais fértil da sua carreira. Basta dizer que, entre Abril e Outubro de 1928, Faulkner escreveu O Som e a Fúria, entre Janeiro e Maio de 1929 redigia a primeira versão de Santuário, e mal corrigiu as provas de O Som e a Fúria, escreveu, em quarenta e sete dias, Enquanto Agonizo, seguindo-se-lhe Luz de Agosto. Cinco romances em quatro anos, todos eles na senda de Flags in the Dust/ Sartoris. Afinal, esse livro havia sido, como ele próprio tinha anunciado a Liveright, aquele que faria de si um verdadeiro escritor. E assim foi. Sartoris surge, na cronologia criativa do escritor do Mississipi, como a obra que inaugura o grande passo na aquisição das suas inconfundíveis marcas narrativas.

Em Sartoris, Faulkner assume, pela primeira vez, que a sua matéria literária provém do território que se encontra sob os seus próprios pés. Os seus temas levantam-se do chão da sua terra natal ainda impregnada do cheiro a pólvora da Guerra Civil Americana de que foi palco. O seu pequeno canto, como chamou à região local, numa das cartas a Liveright, dá respiração a um mundo violento e racista, tenso e rude, supersticioso e brutal, o que lhe permite transformar a provinciana cidadezinha de Oxford na grande terra incógnita, carregada de sombras, mistérios e relâmpagos, que todo o escritor procura criar. Com Sartoris, Faulkner descobre que o seu pequeno canto poderia, afinal, ser escavado em profundidade até nele encontrar o sangue ainda vivo que corria nos subterrâneos das leiras do Mississipi e a partir dele criar um verdadeiro cosmos ficcional. É a primeira vez que o Condado de Yoknapatawpha surge, ainda com o nome de Yocona, a primeira vez que a temática das relações sem contemplação entre brancos e negros assume a espessura literária que se transformará num modo de cindir a realidade à luz da escrita. A sua própria experiência autobiográfica alarga-se à genealogia, e os mortos que se recusam a morrer formam famílias vagueantes carregando consigo o lenho da memória. Fantasmas do passado rondam o presente e essas visitas transformam-se em matéria de ficção. E como tal, surge o tempo psicológico, rememorativo, sincopado, cruzado, o tempo narrativo que se apresenta em ziguezague, originando faixas cronológicas interpoladas, um discurso listado, produzido sob o efeito dos sortilégios da memória. Ou por outras palavras, com este romance, assiste-se à inauguração da “técnica da desordem”, como depois dirá Sartre, e nada mais ficaria igual, nem para os leitores nem para os escritores que vieram a seguir. Aqueles que, ao tempo, ainda estivessem ligados a uma escrita de recorte tradicional, para entrarem nos meandros da acção, teriam de pedir uma cábula ou sentir-se-iam perdidos.

Aliás, Sartoris, para quem continue alheio a esta forma, exigirá algum anteparo se acaso se pretender desvendar os atalhos que lhe abrem os caminho vários, logo a partir das primeiras páginas. Como em relação a muitos outros livros futuros do autor, não é fácil um leitor desprevenido perceber quando é quando, nem onde é onde. Por vezes, é mesmo necessário uma bússola especial para se identificar quem é quem. Em Sartoris, Faulkner inaugura a técnica da geminação de nomes de família, figuras sobreviventes, a maior parte delas provenientes de vidas passadas, e essas figuras vão e vêm, bandos de fantasmas distintos mas embrulhados em lençóis da mesma cor. Neste livro inaugural, o lendário general John Sartoris, que em vida criou os Caminhos de Ferro da região, e na morte tem uma estátua altiva no meio do cemitério, espalha com o braço levantado uma espécie de modo de ser muito próprio, marcando as gerações sucessivas com a força do seu temperamento arrogante e indómito. Mas não é só a sua história que regressa. Regressa a memória de seu irmão Bayard Sartoris, morto por fanfarronice durante a Guerra da Secessão, e regressa o protagonista Bayard, o filho de John Sartoris, denominado Bayard Velho, aquele que ainda está vivo, por altura da primeira página, e só morrerá a páginas tantas, por efeito da truculência suicidária do seu neto Bayard, irmão gémeo de Johnny, o que acabava de morrer nos céus de França, durante a Primeira Guerra Mundial, reproduzindo, mais de cinquenta anos volvidos, o destemor do seu tio-bisavô Bayard.

Isto é, a principal acção de Sartoris desenrola-se ao longo de um ano, entre a Primavera de 1919 e a Primavera de 1920, mas a saga dos Sartoris, que inclui três John e quatro Bayard, entre eles dois pares de irmãos com os nomes cruzados, remonta aos anos sessenta do século XIX, recobre quatro gerações, e inicia-se com a apresentação de um cachimbo onde o patriarca deixou cravada a marca dos seus dentes. É assim que o bisavô, aquele “que tinha passado para lá da morte e depois voltado”, entra em acção, de modo a espalhar pela narrativa fora a tutela de um desejo irrequieto de glória que conduzirá à tragédia. Seja qual for a relação que se queira estabelecer entre as manobras do destino pessoal tão próprio de Faulkner, e a relação de ressentimento e culpa próprios dos domínios do Sul, marcados pela violência da escravatura e pelas peripécias da sua abolição, Sartoris, como em todos os outros seus grandes romances, não se confina às matérias passíveis de serem enunciadas. A escrita de Faulkner é a verdadeira substância da sua ficção, e por isso, a carta que Horace Liveright escreveu ao jovem autor, em 1927, acabaria por ser lida ao contrário. Curioso. O livro que o editor recusava encontrava-se, afinal, repleto daquilo que já então era a substância da modernidade. É esse livro brutal, premonitório, que aqui fica, assinalando um momento de explosão muito particular na História da Literatura. Mais do que isso, proporcionando ao leitor moderno o encontro com a matéria humana mais funda e mais viva, o desejo de ser, para além do tempo. É preciso não esquecer que Faulkner parte de Flags in the Dust para mergulhar na escrita de O Som e a Fúria, considerado por muitos, o livro mais influente de todo o século XX. Para todos os efeitos, Sartoris é a sua antecâmara. O seu brilhante ensaio. Por alguma razão, Faulkner aconselhava aos que ainda não tinham sido introduzidos na sua a obra a começarem, exactamente, por aqui, pela história deste último Bayard.
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* Prefácio para "Sartoris" de William Faulkner
(D. Quixote, julho de 2011)

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