Para o livro dos alunos
Lídia Jorge *
Tudo parece ter acontecido esta manhã, mas não é verdade. Aconteceu quando eu era pequena e na minha escola se ensinava a ler mas não propriamente a ler livros. Também as redacções que então eram pedidas aos alunos destinavam-se sobretudo a disciplinar a letra e a organizar a sabedoria, mas ninguém nos ensinava a escrever textos saídos da nossa imaginação. Assim, eu chegava à escola e a professora pedia – “Escrevam, por favor, uma redacção intitulada O Cavalo, já sabem como é…” E nós sabíamos. Começávamos todos por escrever que era um animal doméstico pelo facto de viver junto do homem. Depois acrescentávamos que era quadrúpede, que tinha o corpo coberto de pêlos, que a sua voz era o relincho, que servia para puxar carroças e também para andar à volta nos circos. E logo terminávamos escrevendo que ele era um animal muito útil, e que não se deveria fazer nenhuma travessura àquele animal. Assim, num mínimo de sete linhas, um máximo de dez. Redacção após redacção, sempre o mesmo, sempre igual, o que não era muito estimulante, não. Duvido que deste modo alguém pudesse ter-se feito escritor.
Mas eu tive muita sorte. Na casa dos meus avós havia livros, e de noite, ao serão, era hábito uma pessoa da família ler em voz alta para as outras pessoas ouvirem. Ora sucedeu que eu comecei a ler muito cedo, e aí por volta dos oito anos, passei a ter a meu cargo parte dessa leitura. Eram livros para adultos, histórias de vidas muito dramáticas como então se usava, amantes que se desentendiam e se matavam, primos que queriam casar com primas e não conseguiam, namorados que os pais não aceitavam e abalavam para sempre, amantes que se desentendiam, filhos que os pais abandonavam dentro dos berços, e assim por diante. Escusado será dizer que eu não lia os livros completos, só lia umas páginas, e algumas palavras mais difíceis apenas as soletrava, mas apercebia-me muito bem daquele clima pesado, e de noite quando ia para a cama não conseguia dormir, pensando que a vida dos adultos era demasiado complicada, que eu mesma não gostaria de crescer. A dada altura, porém, encontrei forma de ultrapassar a situação - Era verdade que na escola eu tinha de escrever sobre as propriedades da água, do vinho, do boi, das plantas, da pesca e do Mar dos Navegantes? Pois bem, mal acabava de me desembaraçar dessa tarefa, num caderno à parte, eu escrevia frases a meu gosto de modo a fazer as personagens dos livros dos adultos mudarem de vida. As histórias da noite não podiam ficar assim. Nos meus cadernos, os filhos encontravam os pais, os amantes casavam com quem queriam, eu não deixava os assassinos entrarem para a prisão se acaso gostava deles, e metia-os numa masmorra bem funda se eram uns patifes sem remédio. Quantas vezes as crianças órfãs das histórias que eu lia aos serões em voz alta, eu não as fiz serem visitadas pelos pais, de surpresa, na noite de Natal! Chegavam embuçados, retiravam o disfarce e diziam – “Sou eu, aqui estou, venho de muito longe, meus filhos!” E claro que para enfeitar essas noites, eu descrevia a neve que nunca tinha visto, e o céu estrelado que eu via muito bem mas ao qual acrescentava outras estrelas. Então foi assim que eu comecei, sozinha, a inventar um mundo para substituir aquele que outros tinham inventado antes de mim. Praticamente sozinha, sem ajuda de ninguém.
Por isso mesmo eu imagino como será bom ser-se aluno desta escola, poder em cada manhã sentar-se a pessoa nos bancos da sala de aula, abrir os cadernos e encontrar professores capazes de lhe ensinar a ler os livros próprios para a sua idade e sua imaginação, professores capazes de ajudar a colocar as palavras certas nos locais exactos das frases que estão inventando. Professores e pais que sabem que ajudar uma criança a ser autor equivale a ensinar a pessoa a ser dona da sua própria vida, e esse é um presente para sempre.
_____________* Nota para livro infanto-juvenil (2010) Tire uma cópia
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