sexta-feira, 29 de julho de 2011

Depoimento * Quanto a Maria Lúcia Lepecki

Versão integral autorizada
do texto editado no Público,
29 de julho de 2011

Nos livros, de mãos nuas

Lídia Jorge *
1.

Estava previsto que Maria Lúcia Lepecki, no passado dia um de Abril, comparecesse na Livraria Barata para apresentar um livro. Telefonou na própria tarde para dizer que não iria estar presente porque não queria descer as escadas. Foi-lhe lembrado que o encontro teria lugar no piso térreo, que não precisaria de descer escadas nenhumas. Maria Lúcia replicou – “Pois desculpa lá, é que também não as quero subir”. E assim ficou tudo explicado, através de uma elipse travessa, um arranjo de pura inteligência, conforme o seu modo muito próprio de dizer.

Ao fim da tarde, muitas pessoas vieram para ouvi-la, mas confrontadas com a sua ausência, também não foi preciso explicar-lhes nada para que o seu nome desencadeasse um aplauso prolongado até começarem a estremecer coisas mais fundas do que as palmas. Aliás, esse aplauso, invulgarmente comprido, acontecia no lugar certo – Entre estantes, risos, editores, professores, livreiros, amigos, e outras espécies afins. Quem tinha tido acesso à sua resposta sabia, porém, que a sua forma de dizer traduzia estoicismo, e atrás do estoicismo, o seu modo de mostrar que afinal continuava a ser uma pessoa nascida para a alegria. A alegria, só por uns momentos interrompida, supostamente separada pelo obstáculo de uma escada . De onde lhe vinha então aquela vontade de existir para a felicidade?

2.

No volumoso livro A Primazia do Texto, um conjunto de ensaios publicados em sua homenagem, que Petar Petrov e Marcelo G. Oliveira ainda tiveram ocasião de lhe mostrar para lhes testemunharem como era amada pelos seus pares, Beatriz Weigert , fazendo um balanço da sua última série de crónicas, “A Vida Íntima das Palavras”, dá particular atenção àqueles textos onde Maria Lúcia invoca a sua infância. No dizer da própria, essa infância fora tão rica que se acaso tivesse acontecido tudo aquilo de que se lembrava, teria durado pelo menos cinquenta anos. Então não é possível desligar a origem da sua alegria das vivências primordiais em Araxá, terra mineira, “lugar alto de onde primeiro se vê o sol”.

A contemplação exaltada perante as palavras também parece ter tido aí a origem – “As palavras bonitas entraram na minha vida muito cedo, sob a forma de nomes de lugares, de frutas, de árvores, de objectos. Mais tarde, descobri provirem muitas delas de línguas indígenas ou africanas”, escreveu Maria Lúcia. E mencionou o avô, o tacto da sua roupa, o sarro do cigarro de palha, o suor do cavalo, a preparação dos sentidos para em seguida atravessar o mundo. É possível que sim, que lá no ponto especial onde o temperamento se transforma em carácter e o carácter em personalidade, a origem em Araxá possa ter o seu peso de alegria e de sal. Weigert não faz essa extrapolação, não era o seu propósito. Mas, no dia de hoje, nada impede de juntar esses factos e transformá-los em causas. No momento em que nos deixa, bem podemos associar a alegria sobre o essencial com o impulso original que demonstrou na leitura que fez da Literatura dos autores brasileiros, africanos e portugueses. Porque não associar o seu encantamento pela vida à forma como se deixou seduzir pelos livros?

3.

Maria Lúcia deixa uma bibliografia avultada, e ensaios dispersos, crónicas, entrevistas, colaborações no Expresso, Diário de Notícias, Colóquio/Letras, Artes e Ideias, Estado de São Paulo, intervenções na rádio e na televisão, revelando-se em todos os meios uma figura originalíssima. Como crítica, em primeiro lugar, porque a sua escolha não parece ser feita por causas mas antes por afinidades de sentimento, muitas vezes por um fascínio a nível da pura expressão verbal, sobretudo quando julga encontrar num autor um saber submerso. Mas o aspecto que mais me toca é a sua capacidade de fazer ensaio, suportada por uma forte componente teórica, sem que dela faça alarde. Os seu textos sobre textos não parecem ter textos eruditos de permeio. Nessa arte da subtracção do suporte teórico, Maria Lúcia ganha uma leveza de interpretação, muitas vezes fora dos cânones, mas sem dúvida com uma particular dimensão de frescura. A impressão que se tem é que se trata apenas de uma leitora que mete as mãos nuas nos textos para deles fazer livros seus , sem vozes intermédias, nem ruídos.

4.

No entanto, Maria Lúcia Lepecki era uma erudita.

A alegria e a expansividade que a caracterizavam tinham um contraponto no recolhimento do estudo, em áreas como a Filosofia, a Teoria da Literatura, a Música, a Cosmografia ou a Religião, matérias de que falava com graça e naturalidade, transformando informação em acontecimento. Por vezes, mesmo, em divertimento. Mas esse recolhimento de semanas, meses consecutivos, levava-a a procurar uma outra totalidade que não fosse a da Literatura e da Poesia. Como vários dos seus colegas indirectamente fazem notar, em A Primazia do Texto, entre outros campos, ela era uma estudiosa da Bíblia, uma pessoa à procura de um elo poético que interpretasse o Mundo a partir dos livros do Antigo Testamento. Curioso que vivesse mesmo a linguagem bíblica na expressão coloquial corrente. Certa vez ouvi a Maria Lúcia dizer, referindo-se a um livro – “Senhor, eu não sou digna desta leitura…” Um excesso que nela não era excesso, era uma forma que se casava com a sua vivacidade onde a imagem ampliada tinha um estatuto de uma outra escala. Numa das epígrafes do seu livro “Sobreimpressões- Estudos de Literatura Portuguesa e Africana”, Maria Lúcia refere uma conversa mantida com o seu pai, em fins de 1974. O pai ter-lhe ia dito que ela já não escrevia em português, mas sim em critiquês. Ela teria respondido – “Perdoa, Pai, ainda não sei fazer de outro jeito.”

5.

Em A Primazia do Texto, três autores referem o Livro de Job, o livro da Bíblia preferido por Maria Lúcia, em sua homenagem. A um dos seus amigos mais íntimos, Maria Lúcia pediu por mail, alguns dias antes, que dele fosse lida uma passagem, numa ocasião muito especial. Chegada a ocasião, o filho de Maria Lúcia fez-lhe a vontade. André Lepecki leu em voz alta uma das mais sentidas interpelações de Job diante de Deus mudo. Estava certo, estava em conformidade com o dilema que a todos atinge, e terá atingido a sua mãe em particular, nos últimos tempos. Faltava, porém, alguma coisa que fizesse regressar Maria Lúcia à sua dimensão de encantamento pela beleza que tem a cor e o corporal. Sem ninguém estar à espera, essa celebração aconteceu por acaso.

Em dado momento da subida, juntámo-nos a uma família de Carmona, Uíge, que acompanhava um angolano, cujo carro subia adiante de nós. As primas do angolano, umas raparigas vestidas de amarelo, cortavam o silêncio do espaço com um ritual, cantado. Não se destinava a Maria Lúcia aquela expressão de saudade colorida, corporal, dramática, mas acabaria por ser. As primas do angolano perguntavam, dançando debaixo das árvores:

Você foi embora, você foi.
Com quem deixou os seus filhos?
Com quem foi?

6.

Maria Lúcia Lepecki foi-se embora, obrigando-nos de súbito a colocar frases no pretérito perfeito e a corrermos a fazer o balanço das palavras que não foram ditas, ainda sem sabermos em que direcção do seu rosto pronunciá-las. A perda começa por ser uma amputação no tempo e logo os verbos avariam e mudam de modo e de figura. Você foi embora, você foi. Talvez nos próximos dias comecemos a acomodar a sua ausência entre os livros que deixou, e a sua pessoa passe a ser uma realidade que atravesse o Tempo e se deite ao comprido sobre ele. Nessa altura, será possível usar um presente ilimitado, e um tratamento directo por você isto, você aquilo, essa forma de dizer o tu mais íntimo da língua portuguesa que Maria Lúcia Lepecki tanto amou.


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