quarta-feira, 3 de março de 2010

Depoimento * Para o álbum "100 Mulheres Portuguesas"

Excepções e regra

Lídia Jorge *

Esta é uma bela homenagem que um jovem fotógrafo dedica às mulheres do seu país. No seu gesto de celebração, escusado será procurar outros motivos que não sejam os do reconhecimento de que o caminho percorrido por cada uma destas figuras, até ao lugar de um certo destaque, representa um contraste em face dos muitos destinos que as precederam e a quem a vida anónima foi negando qualquer menção para registo público. Por umas e por outras, ficaremos a dever ao Gonçalo Cunha de Sá esse gesto simbólico de justiça. Mas não nos enganemos – Do ponto de vista da marcha do tempo e relevo dos seus actores, assim, em separado, as mulheres só serão objecto de discurso enquanto não forem, elas mesmas, sujeitos da acção.

Quando a questão de sexo não for mais um factor de discriminação a nível dos actos cívicos e das acções públicas, as representações de género separadas por salas e por livros, ainda próprias do nosso tempo, cairão em desuso, e farão com que os cidadãos futuros, olhando para trás, se lembrem de que houve um mundo arcaico em que a afirmação das mulheres era excepção. E a ideia de que houve em relação às mulheres tratamentos de minoria deverá provocar riso, pela absurda contabilidade dos factos. Assim há-de ser, por certo, mas não agora, nem aqui, já que alguns domínios fundamentais, as mulheres ainda não passam de alegres recém-chegadas, e em muitos deles, ainda se contam pelos dedos.

Procurando bem, há explicações para tudo. Para esta assimetria imposta e ao mesmo tempo consentida, também há. Desde a explicação induzida pelo vínculo que a Biologia empresta aos corpos, à explicação deduzida a partir da diferença que a vontade de um bom Deus empresta às almas. Segundo a narrativa mais feérica que certo neo-platonismo engendrou num jogo de assimetria entre luz e penumbra, aos homens caber-lhes-ia fazer vingar a imperfeição da vida, invectivando Deus através da revolta que conduz à construção da obra, um acto de soberba e insurreição, que assentaria bem ao rival terreno. A mulher, pelo contrário, colaboradora com a divindade pela gestação dos filhos, faria de sua pessoa o vaso da procriação por vontade alheia, aceitaria na sua própria carne a criação do Outro, dispensando-se assim de se envolver na dissenção que preside ao acto de ousadia do empreendedor e do artista. A mulher seria votada a obedecer, fazendo do acto de subserviência o material da sua genuína construção. A separação das águas através deste ângulo, muito mais enraizado do que pode parecer à primeira vista, dá que pensar.

Agustina Bessa-Luís, que não poupou fustigar o sinal interior da acomodação das mulheres, referiu-se ao hábito de obediência como uma economia do comportamento, do qual elas retirariam lucros de bom proveito, ainda que de mau exemplo, pôs-nos de sobreaviso sobre as mansas. Fez questão de nos fazer desconfiar das vestais sentadas que se sentiriam razoavelmente bem sucedidas nas penumbras dos seus templos. No que não deixa de ter razão. Em todos os tempos, há quem prefira colaborar com a apatia em troca de protecção. Mas essa não é a regra comum.

Se essa regra fosse geral, seria caso para dizer que por qualquer outra razão, as histórias das fadas têm os seus limites temporais afixados pelo selo de consumo, e os seus prazos de validade estão esgotados. Ao longo do Século XIX, o Ocidente pôs em marcha a mais vultuosa emancipação dos escravos de que há registo, e no seio deles - ou apenas como eles, os escravos - as mulheres aprenderam a ler, a escrever e a contar as suas vidas pelo lado contrário do que era suposto. Onde estava a finalidade, colocaram a causa, e onde estava o enigma, colocaram o argumento. Para inverter os dados do destino, Simone de Beauvoire escreveu a meio do século passado, essa frase paradoxal que contém em si um quiasmo irresolúvel e no entanto resultou inaugural pois denuncia o acrescento duma falsa natureza à natureza propriamente dita – “Não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres”. Hoje em dia, de repetida, o seu sentido deixou de ter a relevância, como sempre acontece com as afirmações que se transformam em cliché, mas é de supor que muitas das mulheres aqui fotografadas devam ter tido essa frase como antídoto contra a formatação dos seus percursos. Pois é bem verdade que nem sempre a história da afirmação das mulheres coincide com a história da consciência feminista, mas a sua relação de sintonia e sintoma, causa e efeito, o papel da dissensão não pode ser ignorado.

Também neste campo, o caso português é particular. É costume sublinhar a debilidade da reivindicação portuguesa em contraste com a energia dos movimentos reivindicativos próprios de outras culturas, e com razão. Mas num país blindado pela censura, pela moral conservadora e punitiva, e por uma instrução roçando o nível do miserável, a acção de grupos de mulheres como Adelaide Cabete e Ana de Castro Osório, durante a Primeira República, bem como o trabalho isolado e notável de Maria Lamas, ou a singularidade do caso das Novas Cartas Portuguesas - o selo mais emblemático da afirmação da personalidade das mulheres portuguesas modernas - foram pontos altos que não só precederam e anunciaram a Democracia, mas sobretudo se tornaram detonadores de mudanças de mentalidade e se inscreveram na nova cultura de libertação e autonomia em crescendo que vivemos nos dias de hoje. Além de que milhares e milhares de outras mulheres, umas perto da militância feminista, outras apenas pela afirmação da sua dignidade, conseguiram combater e ultrapassar o meio atávico português, demasiado original no preconceito, mesmo quando apenas comparado com o quadro das culturas conservadoras do Sul da Europa. Para essas, as semi-anónimas, ou anónimas, nunca haverá maneira de lhes criar uma galeria de retratos dispostos num livro ou numa sala. Como não há hipótese de nomear os homens cultos, e os não cultos mas justos e sensíveis, que ao longo das últimas décadas compreenderam que ajudar a dignificar a vidas das mulheres é uma quota antecipada que se paga em conjunto para uma habitação mais digna sobre Terra.

Aliás, estas fotografias, captadas por um homem jovem, vêm dizer isso mesmo – que as duas humanidades, na totalidade, são as duas mães da Humanidade, e que elas não se afirmam nem se salvam se não estiverem em conjunto. Sabemos que quanto mais pobres, mais teocráticas, mais ditatoriais forem as sociedades, mais subalterno será o seu papel. Por isso mesmo, as mulheres portuguesas que pela História ficaram durante tanto tempo dependentes das sombras e das metáforas para dizerem eu existo, poderão vir a ser importantes, na aproximação, encontro e diálogo entre culturas e modos de vida diferentes. As mulheres portuguesas, para quem todo um passado baço e submisso ainda é tão presente, por irrecusável dever de semelhança, poderão lutar pelos Direitos das Mulheres, como parte integrante e inseparável, dos mais elementares Direitos Humanos.
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* Para o álbum com fotografias de Gonçalo Cunha de Sá
editado paralelamente à exposição que percorreu o País
 “100 Mulheres Portuguesas”, com início a 3 de março de 2010
cuja venda reverteu para a associação Mulheres Contra a Violência
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