quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Depoimento * E nisso são irmãos gémeos dos escritores

Laços de Família

Lídia Jorge *

Do outro lado do telefone, alguém me pedia que escrevesse umas linhas sobre editores e escritores, suas relações de vida ou dissidência, uma página breve que fosse, duas talvez, coisa rápida, coisa simples, e eu, em vez de avaliar o que se passou entre Guttemberg e Marconi, deixei esse vasto mundo para trás, e comecei a pensar naquele dia em que subi o elevador do número 225 do Boulevard Saint Germain, no preciso momento em que Marie Ange Masson-Mosca me fez sentar na sua frente, e no fio das suas palavras se ia tecendo a minha relação futura com as Éditions Métailié, um abraço estreito mantido até agora como um laço, não um nó. Mas essa história que já foi contada, a história de uma relação com seu quê de ideal e irreal, de tão profunda e forte, não a vou contar de novo. Deve permanecer encostada aos livros, a alimentar-se do licor do tempo e a ganhar as asas que a amizade tece, sem alarde. Firmemente, sobre essa caso, nada direi, pensava eu, enquanto alguém do outro lado da linha falava dos mitos que hoje em dia se propagam, aqueles que pintam de gelo as relações criadas a partir das casas editoriais e seus escritores, hipoteticamente, tão gelados quanto elas.

E assim, enquanto do lado de lá alguém falava de frieza, lâminas, facas, vidros, despedimentos, cortes, abandonos, modernas legendas trágicas entre editores e escritores, eu pensava naquele dia da Primavera de 2001, em Frankfurt, quando a Ray Güde- Mertin me conduziu ao escritório da Suhrkamp para me encontrar com Siegfried Unseld, e pelo caminho íamos roubando ao jardim público um ramo de flores. Pensava naquele momento em que alguém veio sussurrar que eu iria ser recebida por um minuto, dois minutos, não mais, e que o senhor Unseld não iria levantar-se da cadeira, iria ficar sentado, por um minuto, dois minutos, não mais, e a Ray ficou à espera, e eu entrei, e o senhor Unseld levantou-se da cadeira, e eu não me sentei em cadeira nenhuma, apesar do seu gesto, e ficámos um diante do outro, a dizer palavras de cumprimento, sabendo que nos estávamos a despedir para sempre, nós que havíamos falado sobre Catulo e as mulheres, sobre Goethe e as ervas que compunham o seu manjar, ou Thomas Bernhardt de férias em Portugal, e agora tínhamos palavras urgentes para dizer e já não diríamos, pois tudo tinha deixado de ser urgente, até que ele me disse You will… e eu disse I’m not sure I will…, e cinco minutos tinham passado, e ele não se tinha sentado e eu não me tinha sentado, e alguém bateu na porta, e ele falou em alemão, e eu virei-me, sem lhe estender um braço. Sim, eu sei que atrás da minha relação com Sigfried Unseld havia uma cadeia de pessoas, sabia que outros me haviam levado até ele, mas é dele que estou a falar, alguém que emprestou a vida pela Literatura Alemã e pela Literatura do Mundo. Nunca soube onde deixei as flores, se lhas entreguei, se as perdi no corredor. Pouco importa. Importante é não fazer passar aos adolescentes a ideia de que neste mundo tudo se rege por frieza, lâmina, facas, vidros, sobretudo num campo onde, em princípio se tece o seu contrário.

Isso pensava eu, enquanto do outro lado, alguém me falava da imagem que de momento corre entre os jovens dos liceus sobre a força do dinheiro e do negócio. Ah! O que se conta sobre os editores, esses exploradores dos proventos alheios, esses usurpadores dos talentos dos outros, esses avarentos que irão ser expulsos por São Pedro de qualquer lugar que se assemelhe ao paraíso. Românticos, os rapazes dos liceus, orgulhosos de poderem reclamar por uma ordem protectora dos criadores. Fazem bem. Infelizmente há casos, a história está cheia deles. Toca a todos. Mas em sentido contrário, eu pensava em Doroteia Bromberg naquela noite, em Estocolmo, quando a vi caminhar pela neve fora, rebocando um carrinho com os livros. Ela mesma, a editora de vários Prémio Nobel, ela mesma estendeu os livros sobre a mesa, expô-los, vendeu-os, guardou os que sobejaram, empurrou o carrinho ao longo da rua coberta de neve, e eu que ia atrás, a ver como os colocava na bagageira do seu carro, pensava na sua distinção, no seu respeito pelos autores, a sua cumplicidade, sua defesa, sua luta por umas histórias vindas de longe. Umas histórias portuguesas que a Doroteia achava que os suecos deveriam conhecer. Só isso. E por isso, eu gostaria de ter filmado esse encontro com Doroteia entre os livros, para passar aos adolescentes, para que eles ficassem a saber que nem tudo é um frigorífico onde se conserve o nosso coração para ser comido. Ah! Se eu filmasse! Eu filmaria o rosto de Menakhem Perry quando explica por que escolhe determinados livros, e Christopher MacLehose, e Adolfo García-Ortega, e Luciana Villas Boas, só para dizer aos rapazes dos liceus que tenham calma, que nem tudo é fidúcia e percentagem, que há gente que não dorme por uma boa história, por um belo livro, uma boa frase, um pensamento. Que há editores que se enamoraram de um pensamento, por ele poderão dar a volta ao mundo, e nisso são irmãos gémeos dos escritores. Eles são aqueles que põem no colo dos leitores, o livro que tu escreves na tua mesa de trabalho.

Sim, do outro lado de lá, alguém sugeria uma, duas páginas sobre essa ideia de que a edição se transformou num balneário, e que o editor é um Mister contratado que só pretende golos. E às vezes assim parece, mas se tudo fosse assim, se apenas os golos contassem neste jogo, não seria possível ter existido aquele momento em que o Nelson de Matos, já perto da meia-noite, a partir de Barcelona, mandou parar as máquinas de impressão em Lisboa, por ter percebido que eu duvidava do título do livro em vias de publicação. Sim, era um restaurante de peixe, e já íamos na sobremesa quando a conversa foi parar ao título. Lembro-me, se me lembro, desse momento em que fui para a rua com a Cecília Andrade , e a uma sua palavra a decisão foi tomada. Cecília Andrade é hoje a minha editora portuguesa, ela é e será sempre a pessoa que nessa noite foi capaz de tomar a decisão por mim, de fazer andar de novo as máquinas que haviam parado. Nelson de Matos, o meu editor de muitos anos, ficará para sempre na minha vida com o telemóvel na orelha, à minha espera, prolongando aquela noite de Outono em Barcelona. Até que disse – “Continuem, aconteceu aqui uma dúvida…” E assim, se é verdade que os jovens só entendem a vida em metáfora de pop e futebol, é preciso dizer-lhe que estas cantigas são outras, e estes golos entram noutras balizas, menos rectangulares, menos instantâneas, menos contáveis, e no entanto, necessárias para continuar a nossa humanidade. Que os editores são parte inseparável deste team. É verdade, contra o que se propaga e algumas evidências sugerem, e outras infelizmente o confirmam, o editor é uma figura gémea do escritor, aquele que divulga os livros que ele mesmo gostaria de ter escrito. Este é o único compromisso que não pode ser perdido. A cultura repousa nessa escolha, nessa aposta em que se tece uma espécie de larga família poligâmica, unida pela ideia de uma arte.
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* Publicado com o título de "Liens de Famille"
no Catálogo dos 30 Anos das Éditions Métailiée,
outubro de 2009 
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