A força do mar
Lídia Jorge *
As Correntes d’Escritas passaram à fase adulta, têm dez anos e uma história pública para contar – Mesas, cerimónias, discursos, participantes nacionais e estrangeiros, evolução da assistência, evolução dos serões, dossiers, fotografias, autógrafos, cinema, música, prémios, e tudo o mais que em breve constituirá o acervo dum encontro literário que tem carimbo único entre nós. Promovido por uma edilidade costeira, numa antiga cidade de pescadores, sem outros apoios que não sejam os locais, é natural que ao chegar a segunda semana de Fevereiro de cada ano, em face do que ali acontece, se fale invariavelmente de milagre. O milagre da Póvoa de Varzim. Por essa altura, diz-se, e com razão, que todas as auto-estradas da cultura vão ter à Póvoa, e todos os caminhos das Culturas de expressão ibérica vêm ter a esta Santiago dos Livros. Oficialmente, as Correntes d’ Escritas são uma espécie de tapona de luva branca que uns quantos teimosos dão no rosto dos que teimam em dizer que em Portugal as iniciativas fora do desporto e da religião não vingam. Neste caso, vingam. E florescem, como se vê, por tudo o que se anuncia para esta edição de 2008.
Mas se As Correntes têm a sua história pública, a que a cada ano se acrescenta uma página, os participantes têm as suas histórias privadas.
Não nego que a minha história privada com as Correntes d’Escritas tem sido intensa. Tem-no, por certo. Do privado mais público, recordo debates que me marcaram profundamente. Como foi aquele cujo tema era O Medo ou o Fascínio do Desconhecido, que Alexandre Quintanilha dirigiu com pulso científico, e foi pena que as palavras tivessem desaparecido no vento. Dos vários painéis a que assisti, ao longo dos encontros da Póvoa, e de entre alguns outros de que participei directamente, até agora, a memória elege-o como momento emblema do que pode ser a associação benéfica entre linguagem do método científico e a retórica literária, cruzadas como se fossem uma só. A retórica literária que sempre se repete, com variáveis imprevisíveis, é verdade, mas cuja novidade sobre o processo logo se gasta, pois escrever leva sempre até ao inesperado, mas falar sobre o inesperado conduz inevitavelmente à repetição. Em contacto com o discurso que provém da ciência, a retórica literária acaba ela mesma por multiplicar os ângulos de observação, desdobrar-se em novos sentidos, e em vez de quinhentas portas, abrem-se mil, quando os dois campos encontram um porta-voz que saiba unir as pontas dos dois tipos de desconhecido. Foi o caso. Lembro-me do que aconteceu. A sala do Auditório Municipal estava repleta, naquele ponto em que a presença de tantos intimida, e no entanto, quem falou, falou do seu medo e da forma como ele age sobre a descoberta, como se ali não estivesse ninguém mais do que um só destinatário. O silêncio escorria das paredes. De todas as intervenções, recordo em especial o texto lido por Tabajara Ruas sobre a descoberta da vida duma mulher louca, encarcerada, e sobre o modo de como esse encontro com o mistério mudou a sua vida de rapaz. Essa foi uma das confissões mais sentidas que já ouvi da parte de um escritor, até porque a narrativa não era cómoda. Dessa mesa, participavam a Ana Paula Tavares, o Luís Sepúlveda, o Luís Alberto Vieira. E todos os seus testemunhos foram verdadeiros, porque se sabe quando alguém está a dizer a verdade, mesmo que aquilo que diga não corresponda aos factos. Eles só precisam de corresponder à verdadeira realidade para serem verdadeiros. Naquela mesa sobre “O Medo e o Fascínio do Desconhecido” todas as frases eram verdadeiras. São momentos que marcam, mas nunca podem ser repetidos. Isso passou-se em 2004.
Um outro instante privado muito especial aconteceu com o anúncio de que um livro meu tinha ganho a primeira edição do Prémio Correntes d’Escritas. Fiquei a saber, ali mesmo, naquele momento preciso. Foi alegre e foi difícil. Sob o efeito da surpresa, só pensava no Eça, nascido na Póvoa, e sem nenhum prémio ao longo de toda a vida, e acho que disse isso mesmo, e que pedi desculpa ao Eça pelos seus contemporâneos que não o viram como deveriam ter visto, e por nós mesmos, cujo orgulho e cuja timidez nos põe calados. E disse outras coisas mais, com pouco jeito. A questão do prémio passou-se em 2005.
Mas estes instantes ainda têm o seu quê de público. Pois os instantes privados, os verdadeiramente privados, esses não se mencionam nem se escrevem. São de cada um, só por si. Os meus relacionam-se com o mar da Póvoa, com as ondas que ele envia na direcção das janelas do Novotel, as ondas do mar que se atiram contra a praia, que vêm a caminho do jardim, que empregam a sua força brava para nos alcançar no interior do quarto, o mar que se atira na nossa direcção, na direcção da sala onde trocamos e-mails que não mais serão usados, e nós sentados, discutindo e berrando, e ele bramindo, mas ainda é cedo, ainda não nos alcança. E no entanto, ali está ele a chamar, a chamar. O seu chamamento é uma corrente de escrita que ainda não escrevemos nem decifrámos.
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* in Revista Correntes d'Escritas | Póvoa do Verzim (11 de fevereiro de 2011)
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