quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Prefácio * Eduardo Gageiro

Os três reinos
Este Pó tranquilo foi Damas e Cavalheiros
E Rapazes e Raparigas
Emily Dickinson
Lídia Jorge *

Dizem que os fotógrafos não são pessoas como as outras. Consta que caminham com metade dos olhos entre as mãos e não fazem separação entre o seu corpo e o Mundo, como as crianças e os animais. Neste último aspecto, compartem a condição com todos os artistas dignos desse nome, e ainda bem que assim acontece. Alguém há-de ter a seu cargo a tarefa de manter activa a relação entre os homens e o íntimo coração das coisas. Foi pensando na possibilidade dessa inocência, que me encontrei pela primeira vez com Eduardo Gageiro.

Eram três horas da tarde, sobre uma mesa de vidro ele abria as folhas de um livro chamado Silêncios e insistia na diferença entre o plural e o singular da mesma palavra. Mas não precisava de falar muito mais. A sua eloquência não estava na explicação do sentido dos termos, residia na forma como virava as páginas – Aqui encontrava-me eu em Bombaim, aqui em Genève, aqui o homem estava de costas, e ainda que monstruoso, eu vi-o no meio da solidão, e assim por diante. Embora o que dissesse fosse mais fundo do que dizia, ou estivesse muito mais escondido. Em vez das palavras, as imagens falavam por si, o relato das caminhadas até às imagens, a forma como as havia enquadrado e trazido até ali representavam a substância da matéria que as formava. Para além da mesa de vidro, para além do sol da Primavera entrando às golfadas pela janela, o que o fotógrafo vinha dizer provinha do fundo da Natureza. Como se dissesse – Tenham cuidado comigo, olhem que eu nasci para as árvores, nasci para os seus ramos, seus troncos, suas folhas levantadas contra a luz, suas raízes escondidas no solo. Muito cuidado, que eu não sou daqui. Nasci para os aluviões de terra, para as planícies e os desertos, para as dunas e as montanhas, e os mares. Nasci para todos os mares e os lagos que são a sua lembrança, e os rios que são as veias da terra correndo para os oceanos. Tomem mesmo muito cuidado. Olhem que eu sei que o mundo acorda e adormece sem precisar que a pessoa o embale, mas apesar de ele não me reconhecer como seu parceiro, apesar de não me dizer uma única palavra, eu lido bem com o seu silêncio, e reconheço-o como minha morada. Vejam, vejam aqui como levantei as nuvens acima do homem acoplado ao cavalo, e deixei-os a ambos do tamanho dum ponto feito a lápis, no meio da paisagem, para mostrar que lavram a terra e não são nada. Não faz mal. Todos somos da matéria das nuvens, mas olhe que eu sou mais o homem puxando o cavalo.

Não dizia assim, o Eduardo Gageiro, mas era como se dissesse. Porque nos encontrámos uma segunda vez, à mesma hora, já a Primavera avançava. Ainda mais luz, ainda mais vidro. Mais páginas abertas, mais certezas, e o título definitivo do livro, Silêncios. - Não silêncio, isso não, cuidado comigo e cuidado com o silêncio. Vejam aqui, por exemplo, como olham para nós os animais. Vejam como nos acompanham os pardais, as pombas, como nos olham. Estão a ver como fala através do rosto, o coração do animal? Estão a ver o coração do animal? Como bate, prisioneiro da sua janela? Onde é que eu encontrei estes cães vadios, antes de os encontrar pela segunda vez, e de os caçar à linha, para dentro da minha lente? Onde? – Pois vejam, eu creio que todas estas ovelhas já foram minhas antes deste redil. Se assim não fosse, como é que estavam à minha espera? Escute, os animais devem ter uma glândula pineal feita de espírito pela qual se irmanem a nós. Eu acho que eles são irmãos da nossa companhia, e logo irmãos na nossa solidão. Pensam ou não pensam que viemos todos do mesmo útero comum? Vejam, aqui, como todos nos desfazemos em terra. Estão a ver? – Sim, eu conseguia ver, claramente. À luz escancarada das três horas da tarde, cada fotografia falava por si, sem obediência a nenhum pensamento prévio, nenhuma teoria formada. Quem era eu para o desdizer? – Tem toda a razão, Eduardo Gageiro. Se você levantou do chão, você achou, cheirou, mordeu, provou a realidade e disparou o seu flash, você descobriu o segredo da vida, e nesta história das três da tarde, quem foi ensinada fui eu.

Mas ele pensava que não podia ensinar, que apenas mostrava. Continuava o Eduardo Gageiro - Veja aqui esta criança atrás dos panos. Rondei dois segundos na sua frente para lhe oferecer esta segunda vida. Ele estava dormindo e eu disse-lhe, quando disparei diante da sua cara inchada de leite – Terás uma vida feita de aspectos que hão-de mudar de hora para hora, de segundo para segundo, mas a partir deste instante ficarás aqui, voando para sempre a esta altura, libertada do tempo. Quero que os pássaros saibam, ao verem-te fotografado, que da gaiola do tempo se libertou um fanfarrão. Tu e eu, imagem de criança dormindo, dois fanfarrões fugindo do tempo. Vejam agora estes homens como estão sentados, olhem para as suas cabeças postas entre as mãos, vejam o peso do que pensam, vejam o que eu consegui guardar do que pensam. Alguma coisa dói? Onde dói? Não posso fazer nada contra a dor, meus amigos, porém, sempre que imobilizo o rosto da mágoa, tenho a ideia de que chamo nomes indecentes à dor. E a resistência? O que acham dela? Vejam os rostos fechados da gente, vejam a decência com que enfrentam a má notícia da vida. Serenos, sereníssimos, grandíssimas sentinelas de si mesmos. Sei por experiência que é preciso que um homem se sinta desarmado para conhecer o soldado que traz consigo. Reparem como partem de viagem os homens sozinhos, a caminho da aventura. E umas vezes isso é uma forma de se mostrarem, outras vezes, uma forma de se esconderem. Seja como for, a partida é a única promessa que o silêncio não consente. O silêncio é uma casa vazia onde só se aguarda a chegada, para nada. Silêncios? Sim, esses, pelo contrário, vão de viagem, cada um à sua janela e levam consigo os actos da vida. Às vezes eu estava lá, no local exacto, rondava a cena como um gato ronda a borboleta, rastejava, saltava, caçava a imagem da viagem do homem, esse nómada que ultimamente perdeu a rota de propósito para se sentar, durante oitenta anos, diante duma mesa. Não sou destes, sou dos outros, um andarilho à procura de silêncios, e por isso mesmo tenham cuidado comigo.

Mas ainda houve uma terceira vez.

Então já era o mês de Junho, e falámos pouco. As fotografias haviam sido revistas, uma a uma, e afinal havia ali uma montagem. Criador, este montador de filmes. O fotógrafo abriu o dossier no último capítulo, no lugar onde os mortos parecem vir beber água sobre o papel de impressão, e ao virar as últimas páginas, era como se dissesse – Cuidado comigo, conheço como falam os mortos. Eles falam, falam, mas com interesse, nunca dizem nada aos vivos. Não gosto dos lábios da morte, diz Eduardo Gageiro. São vermelhos, mas não têm palavras para mim. Não sei de que metal são feitos os lábios da morte. Vejam como as velas ardem, como as mulheres choram sobre tábuas, como as escadas vão até ao céu, e lá não chegam. Vocês, por acaso, já ouviram alguma sílaba provinda do outro lado do espelho? Pois bem, tomem cuidado comigo, sei tudo sobre os silêncios do corredor. O que sabem vocês sobre tudo isto? Acaso já experimentaram escutar o silêncio?

Como se dissesse - Eu experimentei, e agora sei que somando silêncio mais silêncio, mais silêncio, e ainda mais silêncio, assim infinitamente somados, dessas parcelas todas, nunca resultarão silêncios. Silêncio e silêncios são duas substâncias quimicamente diversas. Chegados aqui, posso resumir o que sei – Que o plural, segundo a gramática da minha língua privada, resulta da esperança na multiplicação das espécies e eu faço alguma coisa por isso. Cada vez que imobilizo a imagem da vida, dando-lhe outra vida, ajudo a afastar a hora da poeira para os horizontes mais longínquos possíveis. É um pequeno poder, mas ainda assim, serve isto só para dizer que não sou daqui, e por isso, tenham cuidado comigo.

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* Prefácio do álbum "Silêncios"  (novembro, 2008)
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