Piano-bar
Lídia Jorge *
Quando se tem histórias dentro da cabeça, sai-se para a rua e encontram-se duas, volta-se para casa e acham-se três, e se por uma certa noite de Primavera, se sai para jantar à luz das velas, encontra-se uma cena, tão poderosa, que uma pessoa não pode deixar de contá-la. Desta vez foi assim - A mesa estava à nossa espera. Em volta o restaurante, castanho e bege, parecia saído dum sonho antigo. As fotografias tinham a lembrança amorosa das coisas revivais. Mulheres de tranças estavam nas molduras, espelhos aqui e ali traziam de volta épocas de quando havia tempo para uma pessoa se ver ao espelho. E um piano, um soalho de madeira escura, e em volta das mesas, gente de todas as idades. Tudo aquilo muito bem pensado. O passado ali não é uma falsidade, é apenas um passado moderno, uma fantasia de filme para fazer sonhar. Os jovens sabem disso. Procuram o piano-bar para conversarem. Grupos para se divertirem. Naquela noite, as mesas estavam quase todas ocupadas.
Mas numa delas estava um homem só. É preciso dizer que já não era novo. Curiosamente, o homem não tinha chapéu mas era como se tivesse. Estava ali metido numa mesa de esguelha, e logo na passagem, sem dúvida porque jantava sózinho. Eu achava que ele tinha um ar antigo e o sua antiguidade, ao contrário do restaurante que a fingia, era genuína. Achava mesmo que se ele se levantasse teria de erguer em frente do peito, um chapéu, como antigamente os dandys. Estava eu a pensar nisso quando o homem começou a levantar-se. De facto, o homem, já de idade, pousou o guardanapo, abandonou o prato a meio e levantou-se. Não, não tinha chapéu nenhum. Iria sair? Também não. O homem foi até ao fundo da sala e começou a falar com as pessoas de certa mesa. Pensei que se conhecessem e que voltasse para o seu lugar. Mas também não. O homem, já de idade, tinha-se posto a andar de mesa em mesa. Aproximava-se, dizia qualquer coisa, as pessoas escutavam-no, ele abalava e as pessoas entreolhavam-se, temerosas. Temerosas não, talvez risonhas, ou surpresas, como se comprometidas. Até que o homem se aproximou da mesa contígua, e ali encontravam-se uns rapazes, que começaram a rir, e uma rapariga, entre eles, até soltou um espirro, e depois uma gargalhada. Mas em seguida, todos se calaram, e uniram as caras na direcção da vela. Viria o homem até nós? Não viria? Viria. O cavalheiro idoso aproximou-se, baixou a cabeça, pediu licença, e disse - “Queiram desculpar, é só par dizer que hoje é o dia do meu aniversário... Tenham um bom jantar... Muito boa noute...” E o homem idoso, com um pequeno trambolhão, dirigiu-se para a sua mesa e recomeçou o seu jantar. Sozinho, de esguelha, na passagem. As outras mesas quase repletas. Algumas pessoas incomodadas. Talvez sentissem o mesmo que nós sentíamos, porque ninguém dizia coisa com coisa, ninguém falava. Só os rapazes, ao lado, riam.
Nós, completamente assaltados pela surpresa - “Chamamo-lo? Não o chamamos? O que fazer? Vamos felicitá-lo? Já pensámos bem naquilo em que nos vamos meter? Afinal veio junto de nós, e não nos disse nada, a não ser que fazia anos... Será uma pessoa boa da cabeça?...” E na dúvida, com medo de agirmos, de dizermos, nós a mastigarmos o nosso jantar, nem bem nem mal, interrompidos, circunspectos, enviávamos os olhares oblíquos na direcção do homem. Agora ele pousava a faca, o garfo, não tinha querido sobremesa, nem café, sorvia só o que parecia ser um pequeno balão com álcool. Depois, lentamente, pousou tudo, desatou-se de tudo o que o ligava à mesa, levantou-se como se tivesse o chapéu na cabeça, que não tinha, e virando-se para uma mesa, por certo imaginada, entre a nossa e a dos rapazes, despediu-se– “Muito boa noute...” Começando a deslocar-se pelo soalho do restaurante chique, revival. Nós a pensarmos, hesitantes - “Dizemos alguma coisa? Dizemos boa noite, não dizemos?” - Não dissemos.
Não dissemos porque da mesa ao lado um daqueles jovens começou a cantar parabéns, e à segunda sílaba explodiram todos os companheiros da mesa, e levantaram-se todos, e a seguir as pessoas das outras mesas fizeram outro tanto, e ninguém parava. Nem quando chegou o momento de dizer Para o senhor fulano, uma salva de palmas, pois disse-se Para o senhor fum-fum..., espontaneamente, como se estivesse previsto, e prosseguiu-se, porque o restaurante piano-bar, entretanto, tinha-se incendiado. E o homem idoso estava parado, de costas para nós, e não se virou. Esperou até ao fim, e como se fosse empurrado por uma onda invisível que o impelia para o lugar devido, começou a caminhar na direcção da porta, sem se virar, sem nunca se virar. Eu só pensava, não te vires, não te vires, vai, vai indo, ficarás para sempre prolongando esta noite. O momento que encheu esta noite. E depois de o homem idoso desaparecer, os rapazes sentaram-se e riram-se outra vez, pois tudo tinha ficado no seu lugar. Até o homem, lá fora, quanto mais caminhava na direcção da sua casa, mais se mantinha ali, ocupando aquela mesa livre. Onde ficará, sentado.
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* Redigida para a série "Dias Contados", transmitida pela RDP | Antena 2
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