Passamos pela Terra
Lídia Jorge *
Este é
um encontro comemorativo, mas sobretudo
um fórum de especialistas na defesa do Património, e nesse sentido sou uma
pessoa marginal a este debate. Já talvez
não o seja tanto, quando penso que pertenço ao grupo daqueles que aqui
estão presentes apenas porque
consideram que não é
impunemente que passamos pela Terra.
Passamos pela Terra é o
título que dou as estas breves palavras, no pressuposto de que aquilo que nos
aproxima neste encontro é a ideia de que ao longo da nossa vida, quer queiramos
quer não, inscrevemos na sua
superfície o sulco das nossas vidas. O
que cada um de nós pergunta, nas horas de balanço, é como estava a Terra quando aqui chegámos,
como estará ela quando daqui partirmos, e de que lado nos encontrámos, quando
ela desviou para pior, ou, quando, pelo contrário, avançou
no sentido do progresso e da sua
melhoria. Por muito pouco que tenhamos
feito, beneficiando do seu
usufruto, inevitavelmente, melhorámo-la ou diminuímo-la. Nenhum de nós passa pela Terra como uma borboleta que pousa aqui e ali, que nasce vive e morre, mas deixa a Natureza na mesma.
Nós herdamos mudanças e fazemos mudanças, somos
sujeitos activos da História. A
consciência do contributo
pessoal , e da nossa função
enquanto agentes de mudança, nos dias de hoje, é tão mais importante quando
sabemos que estamos inscritos numa zona
do Globo onde as transformações são aceleradas, a alteração dos modelos de vida tem sido rápida, a instabilidade existe, e a filosofia
sobre o aproveitamento da terra, do mar e dos patrimónios recebidos como legado, tem sofrido evoluções tão rápidas que por
vezes se altera em escassos períodos de tempo.
Talvez
por isso mesmo, por essa aceleração de ritmo, o encontro de comemoração dos
dez anos da Convenção-Quadro do Conselho da Europa sobre o Património na
Sociedade Contemporânea, acontecido na mesma cidade e local onde foi assinada, assuma especial significado. Um instrumento legislativo que une a vertente da herança à vertente da inovação, que atribui
ao respeito pela conservação do
legado um papel central na evolução harmónica das sociedades, e que promove como conceito o princípio de que o
respeito pela diversidade da herança
cultural é um motor de consideração pela
diferença e pela coexistência consentida, e logo um promotor de paz.
Aliás, a importância
teórica destes princípios fica bem em relevo, quando se avalia em concreto o que tem acontecido a este
respeito, no seio da própria Europa, o espaço alvo a que este texto
se
dirige.
Por
alguma razão, no livro que Guilherme d’Oliveira Martins publicou há seis anos, dando
conta dos princípios promovidos por esta Conveção- Quadro, se refere a destruição da ponte de Mostar, a antiga ponte que unia as margens do rio Neretva, dinamitada
pelos croatas da Bósnia em
Novembro de 1993, com a simbologia fratricida que se conhece. Oliveira Martins não o diz assim, mas todos sabemos que
lá onde se perpetram crimes graves
contra o património existe alguém capaz de cometer crimes maiores contra
a humanidade. Fora do quadro
geográfico da Europa, quem destrói as imagens dos Budas de Bamiyan, na Rota da
Seda, esculturas com mais de
1500 anos, como aconteceu em
Março de 2001, também destrói populações inteiras, massacra e faz explodir
não só esculturas, mas grupos humanos,
pelo mundo fora, indiscriminadamente. Quem destrói o templo de Palmira, e dinamita um Arco de Triunfo romano, com mais de 2000 anos de antiguidade, como aconteceu
em Agosto passado, é o mesmo Estado que decapita soldados e jornalistas diante dos
olhos do mundo inteiro. E acontece assim, porque o Património não se confunde com a Humanidade, mas é dela o seu retrato.
Por isso se torna não importante, numa escala
menor, ou mesmo residual que seja, demonstrar como o respeito
por aquilo que foi útil e belo para os que já passaram pela Terra e nos
deixaram o seu testemunho como herança, merecer
a consideração do presente, e
convidar à admiração mútua futura, pela beleza expressa na diferença dos
séculos, das etnias, das
nacionalidades, a admiração que concilia povos, territórios, falas, línguas, literaturas, música e músicas. Conceitos que não se vivem em abstracto,
nem surgem só em petições de princípio, antes se concretizam nas
escolhas que fazemos, miúdas escolhas do
dia a dia, decisões curtas, por vezes,
mas decisivas nos lugares onde vivemos. Decisões, junto das nossas portas. E neste caso,
junto das nossas portas, está a
região que aqui nos reúne, o Algarve.
Para
quem aqui vive, aqui nasceu, ou pura e simplesmente para quem estima esta região, é difícil encontrar palavras para proceder em poucas
linhas a uma invocação competente. O facto do afecto sempre se sobrepõe à clareza. Ultrapassemos, nesta circunstância, a
expressão do afecto.
Numa
divisa assumida pela propaganda turística do Estado Novo, dizia-se, então, que outrora, os deuses antigos, cansados das guerras e das árduas batalhas do amor, voavam para estas
paragens para descansar e aqui fazerem a
sua sesta. A Democracia não negou de todo esta mítica vocação de relaxe, mas
sem dúvida que lhe emprestou actividades mais dinâmicas, porque não se dedicou a emprestar este território a
deuses imaginários, e sim, a gente bem
humana e bem palpável. No entanto, como se sabe, só na
representação imaginosa da aurea medirocritas clássica,
é que não existe defeito. Na realidade, sim, o defeito sempre existe. E para as populações concretas, efectivas, e as nómadas,
turísticas, migrantes, visitantes dos nossos tempos, ao longo dos anos, não tem sido fácil criar harmonia.
Fácil,
aliás, seria enumerar os erros, as zonas de caos, as zonas de
sobreposição, as zonas de desprezo, as zonas de pretensão, as zonas de amadorismo, as zonas de
corrupção. Mas esse é um caminho fácil. Em oposição, também não seria difícil enumerar as zonas de conforto, de preservação,
de desenvolvimento, de beleza e de construção integrada, zonas de recuperação, aqueles lotes de paisagem que permitem a
criação de imagens publicitárias
que dão do Algarve a imagem de
uma das regiões mais belas da Europa. O que se nos pede, porém, neste tipo de encontros,
é que façamos alguma coisa mais difícil – Que se assuma o estado patrimonial que existe
como uma criatura que está como está, e a quem teremos, sobretudo , de acrescentar construções,
adiantando propostas que, um dia, no balanço do futuro, exibirão por sua vez
a marca da nossa época, e do nosso grupo, com seu
devido acerto e seu erro próprio.
Tanto
mais que, em vários aspectos, desde há um certo tempo, que estamos a viver, forçosamente, um momento de viragem
de conceitos, e importante mudança de perspectivas. Inscritos numa zona
de instabilidade entre o Mediterrâneo e
o Atlântico, com a História a fazer-se veloz, diariamente, sob os nossos olhos, não há
quem não reconheça que este é um momento
particular , um momento que nos obriga a
reflectir e a aprofundar aspectos cautelares no que diz respeito à
nossa identidade naquilo que ela têm de mais essencial.
Aliás,
como observadora, por certo nem sempre lúcida, ainda que empenhada, registo
com satisfação que essa viragem
ocorra em áreas tão decisivas
quanto são, por exemplo, as que dizem respeito à concepção
da
paisagem natural e à paisagem
construída, e a ambas, quando integradas.
Hoje, pode-se dizer que a devastação criada pela
fúria imobiliária - devastação
voluntária, entenda-se, que só teve semelhança, no passado mais recente, com a fúria do regresso ao primitivo, na era liberal e romântica do século XIX, quando se derrubou a camartelo, desnudou e enviou para
os aterros o melhor dos nossos monumentos - essa fúria imobiliária, dizia, se não parou, pelo menos está contida,
para bem do equilíbrio social, e harmonia da paisagem urbana. Uma fúria imobiliária, como não poderia deixar de ser, agora criticamente avaliada, e redimensionada no terreno. Implosão passou a ser uma palavra digna. O mesmo se pode dizer em relação à paisagem natural. A progressiva
consciência de que é preciso respeitar a
natureza dos vários territórios , bem
como os movimentos ecológicos locais,
promovidos pelas associações de cidadãos, e pelo trabalho da Universidade, tende a repor desvios cometidos e por certo pugnará até ao extremo, pelo maior bem da região, os fundamentos da
sua identidade - a salubridade do mar, do ar, das espécies, a fertilidade da terra nos
locais onde não pode ser tocada, nem arruinada, nem construída. Talvez não seja, pois, errado falar, de que se encontra em marcha um movimento de correção. Neste campo
patrimonial, a correcção será, porventura, a nossa
próxima forma de expansão.
Correcção
nos recursos dos equipamentos culturais, também. O Algarve
do ponto de vista da sua dinâmica cultural, dividida por municípios que entre si se rivalizam, constitui, cada vez mais, um arquipélago de cidades artificialmente separadas, de que a união e a coordenação em torno de
projectos comuns constitui práticas esporádicas e excecionais. Mas a constatação, cada vez mais frequente, de que a região
vai ter de funcionar como uma metrópole
cultural, articulada, com partilha e coordenação de recursos, necessidade reconhecida pelos vários intérpretes regionais, por certo que
tenderá a encontrar uma liderança que a promova , e uma administração que a execute. Decidir
sobre a terra com minúscula, é sempre decidir sobre a Terra com maiúscula.
Por
outro lado, tomada a consciência de que
a valorização e conservação do Património
construído tem de ir a par do Património
imaterial da região - o que pelo menos em parte tem sido realizado ao logo dos últimos anos - se não estou em erro, carece da tomada de alguns cuidados
sem os quais os cidadãos
não se reverão no seu património, como um bem que lhes diga respeito. É que a
herança
oral de aparato folclórico, coreográfico ou religioso,
a par da sua preservação, carece
de instrumentos de integração que os incorpore na modernidade, sem os quais, a cultura pop homogénea tenderá a
apagar os vestígios distintivos
provenientes do passado, aqueles
que determinam a identidade única e original .
Essa é uma luta importante, porque representa a tentativa de promover a
diferenciação, de manter uma inscrição no tempo que distingue,
e uma aposta no ex-ótico que
enriquece . Embora esse salto qualitativo, que se pretende que seja dado, num mundo em que a sofisticação dos instrumentos tomou
de assalto a sofisticação dos conteúdos,
seja difícil de dar. Se vale a pena? Em
minha opinião, sim.
O
reforço na identidade cultural de uma sociedade é a melhor garantia de que
quem, vindo de fora, a procura, não apenas se desloca no espaço, mas viaja.
A noção de
oferta turística enquanto assimilação antecipada em relação àquele que nos visita, é uma
aposta demasiado escassa. Encontrar o mesmo à chegada que se
possuía à partida não recompensa.
Seria o mesmo que os habitantes de
Veneza, ou Roma, em vez de nos oferecerem melancia vermelha
servida em vidro de Morano, nos oferecessem
a nós, portugueses, pasteis de
Belém, junto à
Fonte de Trevi.
Aliás,
parece ser um princípio tão basilar que uma vez exposto se confunde com o óbvio, o afirmar
que a valorização do autêntico, o histórico
e o criativo, se deve dirigir, em
primeiro lugar, para os próprios sujeitos da comunidade de origem.
Os próprios como primeiro
destinatário, os habitantes nativos,
os da própria região,
até pela simples razão de que os
próprios fazem parte do património que
se move. E embora em acto contínuo,
só os visitantes de uma região, de uma
cidade estrangeira, ou o que quer que
seja, se transformam em destinatários
privilegiados, porque acolhidos no mundo que é dos outros e do qual passa a
partilhar do seu melhor.
Por
isso, Sagres, o mítico promontório de Sagres, local
simbólico de partida para a
primeira globalização, não pode deixar
de se transformar num local de visita
indispensável, em primeiro lugar, para os cidadãos portugueses. Um local
incontornável de visita para os europeus, e para os cidadãos do mundo inteiro que passem pela Europa da Sul. Um esforço que deve ser feito – aliás, que
está a ser feito - um objectivo em torno do qual nos temos de unir.
Mas
também me parece não menos
importante a consciencialização de
que a região se nutre de uma narrativa histórica, uma poética e
uma narrativa ficcional, faltando-lhe
uma narrativa cinematográfica, com
raízes nesta zona, ou tendo esta zona como sujeito
transfigurado. A indiferença por essa dimensão é imensa,
e no que diz respeito à narrativa cinematográfica, o retraimento
se não é total, é quase. A chamada de atenção para essa dimensão estruturante da identidade através
da efabulação e da transfiguração
poética por meios audiovisuais, numa zona que em tempos foi ocupada
por povos sobre os quais
consta que tinham o seu corpo de leis escrito em verso, pareceria fazer todo o sentido. Mas talvez
esse sentido só seja encontrado um dia, mais tarde, quando a nossa ambição
for outra.
Ou
talvez, pelo contrário, estas palavras,
daqui a alguns anos, pareçam desconjuntadas e ridículas.
Ninguém nos garante que a aposta
na colonização cultural, na homogeneização, na facilitação, na infantilização da cultura,
nos serviços de entretenimento comprados
à distância, por catálogo, não seja a
aposta global vencedora. Ninguém nos
garante que a aposta de que a Terra, sim, será plana, parafraseando
o título voluntarista do cronista do The New York Times , autor no domínio
da economia liberal, de The world
is flat , não venha a ser o que
nos espera, no plano do Património e da Cultura. O que a Convenção – Quadro do Conselho da Europa procura precisamente
é inverter esse caminho, com a
promessa do reforço da criação de
valores de diferenciação positiva. Os
seus mentores, alguns deles aqui presentes, asseguram esse ideal, um ideal
que por certo se transformará
em realizações justas aqui
, sobre esta terra.
Uma
nota pessoal para dizer que, sobre esta terra, tenho escrito dezenas de páginas, e a partir dela tenho fantasiado centenas, talvez mais de um milhar. Mas a imagem síntese do que
me prende a este território, talvez só o tenha encontrado há dois anos, quando
me pediram que escrevesse um texto de introdução a um livro sobre Vilamoura.
Debruçando-me durante algum tempo sobre esse que foi entre nós, nos anos
sessenta, o projecto mais coerente
da criação
de uma cidade moderna, criação a partir de um espaço aberto, edificado sobre a reminiscência de uma antiquíssima ruína, dei-me conta do achado
de uma lamparina de azeite, uma pequena
lucerna, aquando das primeiras escavações
no local. Essa lucerna de barro acabaria por ser, durante muito tempo, o
emblema de Vilamoura. Passei a
gostar dessa lucerna. A ideia que eu
tenho, agora, é de que ela é o símbolo
de toda uma região se, no seu caco de terra cozida, formos capazes de acender a chama que ainda lhe falta. Não tenho
dúvidas de que nós, aqui reunidos, queremos acendê-la. A minha esperança não tem limites. Obrigada.
*Comunicação de Lídia Jorge na Conferência Internacional por ocasião do 10º aniversário da Convenção de Faro
27 de Outubro de 2015
Teatro das Figuras