quarta-feira, 11 de junho de 2014

De Guilherme d'Oliveira Martins

Foram eles, os cinco mil

in e-Cultura.pt

«Os Memoráveis» de Lídia Jorge (D. Quixote, 2014) é um romance que ultrapassa em muito a invocação de um acontecimento histórico, a revolução democrática portuguesa de 1974, já que estamos perante uma reflexão atual sobre a liberdade, a resistência e a esperança. Ao longo do livro, encontramos o ceticismo e a vontade, a dúvida e o empenhamento, mas sobretudo a imperfeição natural das sociedades humanas, que não podem ser aprisionadas pela indiferença ou mesmo pela utopia…

O VALOR DA LIBERDADE
«Os Memoráveis» de Lídia Jorge leva-nos, no título, quase sem querermos, a Xenofonte, mas há algo que aproxima e algo que afasta a obra do clássico antigo, de um lado, os ideais e os princípios, de outro, as pessoas, os sentimentos e as tentações. A liberdade, afinal, quando entra na normalidade das coisas vai perdendo o fulgor. Péguy resumiu o tema de um modo emblemático: «tudo começa em mística e acaba em política». A história funciona pendularmente, e é esse movimento que a autora procura descobrir, sem se ater apenas a um começo e um fim… A apatia, o imobilismo e a indiferença levam ao acordar. E sente-se que esta escrita tem a ver com uma obrigação de despertar e de resistir… Não há nostalgia, como na decadência, mas sentimento melancólico, que obriga a agir, não retrospetivamente, mas olhando para diante. E lembramo-nos do que Lídia Jorge disse em «Contrato Sentimental» (Sextante Editora, 2009), partindo da alternância (sempre o pêndulo) entre o herói do mar e o lixo a que alguns desejariam votar-nos (estávamos no auge dos ratings das agências): «seria ridículo garantir, com base no passado, ou mesmo no presente, alguma coisa de seguro em relação à sobrevivência futura deste tipo de convivialidade amorosa entre os outros e o tuga, o tuga e os outros, sabendo que nós mesmos em breve seremos outros, e os outros também serão outros em contacto connosco, num mundo tão amplamente aberto, sobretudo quando os mitos de representação forem diferentes e as relações de poder se alterarem, a ritmos que não podemos prever». E aí, dizia a autora, em vez de processo de integração só há processo de educação. E que educação sentimental? Como afirmou Mário Mesquita na apresentação de «Os Memoráveis», no dia em que fomos despedir-nos de José Medeiros Ferreira, o que está verdadeiramente em causa neste livro e nesta reflexão é um espírito de resistência.

A PARTIR DE UMA FOTOGRAFIA
Numa fotografia em torno da qual vai girar o romance, tirada no «Memories», temos as personagens cujo percurso a romancista vai acompanhar e analisar: El Campeador, o Bronze, Charlie 8, Umbela, António Machado, Rosie Honoré, o cozinheiro Nunes, o Dr. Salamida, três militares barbudos, o casal de poetas Ingrid e Francisco Pontais, o fotógrafo Tião Dolores. Ana Maria Machado, repórter portuguesa em Washington, é convidada a fazer um documentário sobre a Revolução portuguesa de 1974. A «machadinha», filha de António Machado, e a equipa da CBS (Margarida Lota e Miguel Ângelo) vão encarregar-se, assim, da investigação sobre esses protagonistas: onde estavam? O que sentiram na altura? Que balanço fazem, passados os anos? Qual a melhor imagem de tudo o que aconteceu? Daqui tudo parte. Um acontecimento histórico não se resume a um momento, é uma evolução, um encontro de sinais contraditórios. E depois da fábula, vamos descobrir a «viagem ao coração da fábula», onde se desconstrói o estereótipo do embaixador americano e onde se vai descobrir a matéria de que se fazem as vidas: ressentimento, egoísmo, inveja, maledicência. E, mais importante do que descobrir quem cada um é, a verdade é que a autora vai compondo as personagens com elementos vários que os tornam recomposições da realidade, desaconselhando o exercício de tentar descobrir o rosto que está tapado pela máscara. Há situações evidentes e outras propositadamente menos claras, já que um romance tem de deformar a realidade para a tornar verosímil. Agustina ensinou-o sempre, magistralmente, sobretudo quando se lhe apontavam as aparentes contradições na narrativa. Lídia Jorge faz muito bem esse difícil exercício. «O que me interessou foi ver o tempo a correr, perceber o que ficou, surpreender a memória no momento em que deixou de ser necessária. Porque a memória tem em si a artimanha do esquecimento» (J.L., 5.3.14).

COMPREENDER A REALIDADE DE HOJE
«Os Memoráveis» ajudam-nos a compreender o Portugal de hoje. Com preocupações de agora, vemos que um acontecimento como o 25 de abril de 1974 não se resume a uma ocorrência pretérita, porque a liberdade e a democracia são presentes e sempre inacabadas. Eduardo Lourenço, de «Os Militares e o Poder» está presente quando diz que «a Revolução não veio pôr apenas em causa os mecanismos do poder civil nem as relações do poder militar e do poder civil, mas a própria ordem militar». No entanto, nesta novíssima psicanálise mítica do destino português, mostra-se, entre outras coisas, «que são as Forças Armadas que estão na Nação e não a Nação nas Forças Armadas», e é a partir daí que a história pendular deve continuar a ser acompanhada. Lídia Jorge tem, por outro lado, razão quando coloca «Os Memoráveis» ao lado do seu primeiro romance - «O Dia dos Prodígios» - tendo a sensação correta de o estar a atualizar. Sentimo-lo numa leitura atenta. De facto, vamos de um ato de fixar um tempo que desaparecia até à necessidade de «compreender um tempo que está para vir»… Eis o fio de Ariadne. As personagens de «Os Memoráveis» recriam o que foi a euforia revolucionária e a desilusão que sempre se segue a um período de entusiasmo, no caminho sempre difícil, de avanços e recuos, para a emancipação. E quando lemos, no final, o argumento do filme, compreendemos por que razão se diz: «É muito importante que o Bronze, antes de mais, diga o que disse – “Classifico-o como obra de um milagre, minha senhora. Milagre, sim. Sendo eu um agnóstico, até que gostaria de usar outro termo mais sereno, mas não encontro. E milagre porquê? Pela coincidência no tempo de factos inesperados. Olhai! Registem a minha opinião antes que seja tarde”. Por razões óbvias esta passagem deve ser incorporada na íntegra. Não encontro nenhuma outra declaração que melhor defina o espírito de “História Acordada” (…) Não nos interessa escurecer o que pode ficar claro. A nós só nos interessa recuperar a metralha de flores que o tempo deixou intacta». Estamos perante uma construção de quem? O Oficial de Bronze bem insiste: «Quem desenhou o plano e comandou as movimentações a partir da Pontinha? Nem eu, nem ele, nem nós, nem vós. Foram eles, os cinco mil». Por isso, alerta para as tentações dos vários cultos do eu («…já cada um queria ter uma estátua erguida…»). E confessa-nos: «Sou franco, eu também me envolvi, também disse demasiadas vezes eu»… E a viúva de Charlie 8 lembra que este sabia que cinco mil homens «estavam a fazer rodar as agulhas sobre o mostrador». Mas o Campeador não vai ter voz no filme, intencionalmente, porque a «figura do estratega deve ser poupada à fala. Sempre que um mito fala o seu barro arrefece». A capa do livro invoca El Cid, o Campeador, Don Rodrigo Diaz de Vivar, um cavalo à beira-mar, não altivo mas de cabeça baixa, figurando o velho mito histórico: «o meu corpo será cadáver e ainda há de ganhar batalhas»… É assim que Lídia Jorge, neste momento alto da sua obra, deixa a memória esbatida, forte e sem ilusões, de uma resistência e de uma esperança que não se desvanecem.

De Miguel Real

Lídia Jorge:
um rasgão no tempo.

In Jornal de Letras 11março2014
Miguel Real: Os Memoráveis ostenta  uma
das mais belas e dúcteis aplicações
da língua portuguesa atual
Os Memoráveis, de Lídia Jorge, indubitavelmente um dos seus melhores romances, prossegue a rememoração da história recente de Portugal encetada pela autora desde o já longínquo O Dia dos Prodígios (1980). Nesta cartografia da memória e da identidade históricas portuguesas, Lídia Jorge procede em Os Memoráveis como procedera nos seus mais representativos romances: a criação de um novo horizonte de sentido para a história, de uma reinterpretação dos acontecimentos, de modo a, captando um seu diferente veio unitário subterrâneo, desdobrado numa multiplicidade de focalizações literárias, estabelecer uma nova narrativa reveladora da dimensão libertadora, opressiva ou decadente da história. Num texto publicado em Para um Leitor Ignorado. Ensaio sobre a Ficção de Lídia Jorge (org. Ana Paula Ferreira, 2009), a autora dá conta da sua oficina de escrita: 1º, o nascimento de uma imagem na sua consciência; 2º, o aparecimento de rostos, de vozes; 3º, a emergência de movimentos, de contendas, de tensões, desencadeando o processo dinâmico de várias vontades em disputa por algo. Vista deste modo, eis - em brevíssima síntese - a estrutura de Os Memoráveis: uma foto de Agosto de 1975 cristaliza o tempo português entre a revolução de 1974 e a primeira década do século XXI, eixo central da diegese; dessa fotografia emergem os rostos e as vozes dos protagonistas da revolução e, involuntariamente, do seu fracasso, nomeados por alcunhas por um dos retratados na fotografia (Rosie Honoré Machado, belga, casada com o jornalista português António Machado, pais de Miss Machado, jornalista da CBS, que no tempo presente investiga a emergência do movimento militar do 25 de Abril de 1974 para um episódio de uma série televisiva intitulada "A História Acordada", ideia do embaixador americano em Portugal em 1974/75); a partir das posições de cada um dos elementos da fotografia captada no restaurante "Memories" (El Campeador, o Bronze, Charlie 8, o Umbela, A. Machado, Rosie Honoré, o cozinheiro Nunes, o Salamida, benzendo a terrina postada no centro da mesa, três militares barbudos, o casal de poetas Ingrid e Francisco Pontais e o próprio fotógrafo, Tião Dolores), desencadeia-se a investigação da equipa da CBS (Ana Machado, a jornalista Margarida Lota e o operador de som e imagem Miguel Ângelo), refazendo uma nova narrativa histórica sobre o 25 de Abril, intentando libertá-lo das camadas conflituais que sobre ele se depositaram desde 26 de Abril até ao final do século, gerando interpretações deformadoras daquele dia historicamente auroral, dia em que o "anjo da alegria" (p. 24), gerando uma "pausa na incessante selvajaria humana", provocou o momento em que a História de Portugal sofreu um rasgão no tempo convocando os deuses da beleza, do bem, da virtude desinteressada e da felicidade. Porém, no fim desse mesmo dia, aquando do encontro entre os capitães de Abril e o general Spínola, a dissensão, a "contenda" (que a autora busca para desencadear a ação diegética) e a maldade inata humana, começam a trabalhar para que o dia gratificado entre todos se metamorfoseie num horizonte de desgraça e decadência.Nenhum romance português reconstruiu o dia 25 de Abril de 1974 como este, rememorando a sua inocência, a sua pureza e, também, alguma ingenuidade. Por isso, o romance inicia-se com um curto capítulo intitulado "A fábula" e prossegue com o desvendamento desta (a reconstrução histórica), "Viagem ao coração da fábula", desconstruindo os clichés apresentados no primeiro capítulo por Frank Carlucci por via da reconstrução narrativa, em cerca de três centenas de páginas, da vitória da malícia, da inveja, do ressentimento dos "anfíbios" (os "vira-casacas" da I República), aqueles que "tinham sido concebidos e educados (...) para viverem em ambos os lados [políticos] e em todos os regimes" (p. 249). São estes que ora humilham "El Campeador" na Praia Grande; fazem desaparecer o registo fotográfico de Tião Dolores; castigam com serviços militares inqualificáveis Charlie 8; culpabilizam os antigos militares "barbudos", um ora professor de Biologia e ecologista, outro mecânico de automóveis; caluniam nos jornais a probidade de Umbela, obrigado a defender-se em tribunal; remetem para as pequenas causas nobres sem retorno financeiro o antigo locutor Salamida, posteriormente advogado, que desencadeou o golpe militar pondo no ar a canção "Grândola" na Rádio Renascença; e sobretudo, sobretudo, desqualificam as intervenções jornalísticas de António Machado, despedido pelo novo diretor do jornal.Figuras inocentes e por isso trágicas na roda da história, que mais recorda o mal (a guerra, o sangue, os vencedores finais, que apagam do registo historiográfico os vencidos) do que o bem, todos os retratados do "Memories" "estavam a pagar" (p. 290) - conclui a repórter da CBS - o ato epopeico e libertador (porque desinteressado e inocente) do 25 de Abril. O momento final da decadência dos sonhos do 25 de Abril é dado, individualmente, pelo isolamento trágico de António Machado, trancado dentro do quarto, sem dinheiro para pagar as contas da luz, do telefone e da água.Lírico (tentativa da reconstituição de um dia virginal) e trágico (revelação do povo como o sacrificado do altar da História: o "anho" encravado na terrina do centro da mesa, abençoado por Salamida, que, segundo o casal de poetas Pontal, áugures da História, prenunciou fatalisticamente o fim sinistro da Revolução), o romance Os Memoráveis ostenta uma das mais belas e dúcteis aplicações da língua portuguesa atual, de vínculo moderno, cosmopolita (sem pudor de nela integrar frases em francês e inglês), postando-a literariamente num meio-termo entre o coloquialismo brejeiro habitual na maioria dos romances portugueses de hoje e o eruditismo académico. O primeiro capítulo atinge um tal paradoxo de beleza estética que atrai e assusta simultaneamente o leitor, já que se, por um lado, as 40 primeiras páginas estatuem a língua portuguesa a um nível excessivamente alto para serem dadas como exemplo de imitação, cria no leitor, por outro lado, a consciência do gozo estético propiciado pela flexibilidade sintática e morfológica (o jogo das proposições e das conjunções e o jogo dos tempos verbais) e pela elasticidade semântica que atravessam todo o capítulo.Romance de leitura absolutamente imprescindível para quem viveu o 25 de Abril, para quem queira interrogar hoje a história recente de Portugal, descobrindo-lhe um sentido superior ao dos slogans proferidos no Parlamento nos dias comemorativos, e para quem ame deixar-se impregnar esteticamente pelo doce "sabor" da língua portuguesa - tripla constelação da leitura de Os Memoráveis.

terça-feira, 10 de junho de 2014

De Eduardo Pitta

"Triunfo absoluto da ficção"

in Da Literatura, 15maio2014
Hoje na Sábado escrevo sobre Os Memoráveis, de Lídia Jorge (n. 1946), romance que tem a dupla intenção de celebrar os 40 anos da queda da ditadura e de instigar as gerações nascidas em democracia a sair da letargia. Num país onde os intelectuais parecem ter desistido de intervir, em especial os mais jovens, apostados em fazer da abulia um traço distintivo, Lídia Jorge faz parte do reduzido núcleo de autores com intervenção cívica. E como não confunde literatura com o direito às convicções, a obra sai incólume. Os Memoráveis é um grande romance, não pela circunstância de dar voz ao lado “correcto” da História, mas por ser exemplo de alto conseguimento literário. Quem conheça a obra de estreia da autora, O Dia dos Prodígios, sabe que Os Memoráveis fecha o ciclo da esperança. A intriga tem um curioso detonador, mas, ao relato factual, Lídia Jorge opõe a deriva mnemónica. Como num anti-clímax, a precisão do Argumento que fecha o livro dá a medida da distanciação crítica. Triunfo absoluto da ficção, mesmo estando lá o Salgueiro, o Carvalho, o Lourenço, o Antunes, o Vulto que impediu a guerra civil, e outros e outras que rasgaram o tempo. Não falta sequer “a poeta Ingrid”, a quem a narradora chama Varinha Mágica. Que tudo isto seja feito sem proselitismo, num discurso que se abstém de tessitura heróica, não é pequeno mérito.